quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Folhadão de Frango com Caril

Ingredientes

- 4 peitos de frango
- 1 cebola grande
- 2 dentes de alho
- cogumelos portobello (uma embalagem)
- 1 pimento verde
- 1 pimento vermelho
- margarina
- sal
- gengibre
- orégãos
- açafrão das índias
- pimenta preta
- duas colheres de sopa de caril
- limão
- natas porcini
- massa folhada congelada
- gema de ovo
- pedacinhos de bacon fritos

Preparação do recheio

Antes de mais, pré-aquecer o forno a 200º C.
Cozem-se os peitos de frango num tacho e adiciona-se sal. Num almofariz, esmagam-se os dentes de alho, sal, pimenta, caril, sumo de limão, orégãos, açafrão das índias e gengibre. Numa frigideira grande, derrete-se um pouco de margarina e a cebola picadinha e deixa-se alourar. Juntam-se os pimentos cortados em tirinhas, os cogumelos portobello e a papa anterior envolvendo-se tudo com muita paixão. Depois, acrescenta-se o frango já desfiado e rectificam-se os temperos (sal , pimenta moída no momento e caril). Por último, adicionam-se as natas porcini.

Preparação da massa

Forrar uma forma (redonda, de preferência) com metade da massa folhada, espalhar o recheio ainda morno e cobrir com a massa restante. Por último, pincela-se agema do ovo, adicionam-se os pedacinhos de bacon frito e vai ao forno por 20 minutos. Delícia!

Receita de: Anocas Ardente

Verde trópico

violai os ossos
loucos varridos
do rapaz-tordo
outrora capitão de uvas bravas
conta a boca do falatório gordo

Estêvão passeava de burro – acolá
atrelado aos seios amarelos
da prostituta de corpo em chama
outrora mulher de arroz
massemba de cama.

cacimba
dança das carnes
sujas de vodka
e carentes de sal

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

“Sim…sim!” E.M. de Melo e Castro

o poeta é a merda do universo: possui todas as características do dejecto. Concentra em si a digestão do gesto; a genofagia do êxtase; a plasto_contracção do fluído; a cagoécia espan_torreica do astro; a feno_inflação do susto; a culo_táctica alviltrante do entre; a conges_tomatia da fúria; a subru_ptura do esfincter; a tirano contúcia do tesão; a espro_tuberância dos dedos; a ultra_fragância cliotoriana da nuvem; a proto_putática do cio; a venusiana contursão do ingesto; o factócio odor da pituito_gonoraica alga; a fundibular arrogância do ronco; a inco_butência lacunar do humor; a factoécia consistência da cístole; o infrutífero agosto do genefágio; o estro da alti_contur_bância da bacia;a penis implacência da pes_nínsula; a fictofinura insinular da inflo_strutura; o oginato fulgor do anão anal; a para_pirotécnica do sobre; a ficta inflogestão do gestual subje_ctinvo; o adjecto fragor do estrondo; a fúricaarragância do cilindro; a exalo ternura da ubstância mole; o facto falância mulhada; o duro durão do melotão; a igno rrância das bactárias; a ultra pante_rroico fulminância; a coiso coisíssima nenhuma.

http://www.truca.pt/raposa_textos/poesia_34_melo_castro.html

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Relógios Falantes

Nos relógios falantes encontram-se dialogando o relógio das Chagas e o de Belas, ambos a consertar no serralheiro. As suas considerações constituem também uma censura aos costumes do tempo, dos validos, da moda, etc. Por fim, o tom é mais grave, e fala-se na velhice e na morte.
Relógio da Aldeia. Senhor Relógio da Cidade, badalemos limpo, que as paredes ouvem, e as de campanários nunca foram de segredo.
Relógio da Cidade. Olhai ora cá: se o estar sempre à dependura me não me há-de valer para tirar o medo de não morrer enforcado, melhor é acabar logo por ua vez!
R.A. Cal-te, que te fundirão!
R.C. Pois que importa? Farão de mim campainhas, e então lhes direi por cem bocas o que não querem ouvir de ua. Par Deus! mas que me fundam, mas que me confundam, eu hei-de tanger sempre a verdade!
R.A. Por isso tu cá vens por mentiroso. Diz que a verdade, na língua dos que a não falam, e como a água do Chafariz de El-Rei, que, por correr por canos de enxôfar, sempre faz mal ao fígado.
R.C. Fígados há aí tão danados, que da água pura e clara fazem peçonha.
R.A. E tu, amigo, que ganhas em desenganar o mundo, que se não quer desenganar? O sumo grau da sandice é perder-se um pelo ganho do outro.
R.C. É nobreza de coração, e ainda proximidade, não deixar perseverar a ninguém no seu engano.
In Relógios Falantes, de D. Francisco Manuel de Melo, escritos de 1654 a 1657.
Ao contrário da maioria das raparigas do seu tempo, Luísa nunca quis casar. Desprezava a ideia do amor oficializado, burocrático, guardado numa prateleira conspurcada pela traição e pelo egoísmo. Na juventude, aprendeu desde cedo a amar o corpo, em todas as suas formas, e a respeitar a natureza carnal do homem. E sempre que o vento trespassava o tecido delicado da saia rodada e lhe atiçava o sexo masturbava-se, roçando as pernas devagarinho.
Nunca foi mulher de um, mas de muitos. Era raro o homem que não se deixava seduzir pela sua figura voluptuosa e carnal. Os olhos ligeiramente descaídos na ponta e os seios gordos e firmes sussurravam tesão ao ouvido de sexos duros. Luísa perdeu a virgindade com um rapaz, filho de um soldado das ex-colónias.

Imortalidade

No céu, cavalos brancos com pernas longas lutavam exaustivamente com o vício que lhes apontava o dedo. Ouvia-se o sopro de um homem que se ergueu nu no topo de um relógio, segurando na mão uma cruz de madeira. Luísa estava no centro do altar presa a uma criatura miúda e frágil, com orelhas entrançadas e seios minguados. Verteu no copo línguas de uvas pisadas e juntou as mãos em sinal de oração. Trazia vestido um traje medieval, com uma corda atada à cintura. No cimo do monte, um caixão dourado, reluzente, com duas cabeças tortas dentro e “IMORTALIDADE” inscrita num dos lados do caixão. Da sombra, assomou uma linda mão de mulher que lhe esmagou o crânio até este dar sumo.
Luísa acordou em sobressalto e olhou para o relógio na mesa-de-cabeceira que marcava as cinco da manhã. Observava fixamente o tecto amarelado, entristecido pela humidade do Inverno passado. Abriu a boca quase selvagemmente e alongou o pescoço de forma desengonçada como se acordasse pela primeira vez.
"Com onze canecas de cerveja e sete gins brincando às escondidas no bucho, caiu do primeiro degrau e só parou lá em baixo. (...) Era a noite de sábado, o melhor, o maior, o mais alegre pedaço da semana, um dos cinquenta e dois feriados na roda lenta do ano, um violento preâmbulo para um domingo de prostação. Paixões acumuladas estoiravam na noite de sábado, e os efeitos de uma monótona semana de trabalho nas fábricas eram expulsos do corpo em explosões de euforia. Seguia-se a grande máxima «bebe e diverte-te», deixavam-se os braços nodosos apertados em torno de uma cintura feminina e a cerveja a deslizar beneficamente pela garganta a baixo, direita à capacidade elástica do estômago."
In Sábado à noite e domingo de manhã, de Alan Sillitoe

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

sal

não sou o sal
nem que me gritem ao ouvido
não sou boca, nem cal,
nem cabeço fingido.
à pátria queimada,
à voz calada pujante
cedo o meu amargo corpo
terrestre etéreo viajante.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Era uma vez o reflexo de um espelho que, todos os dias, mirava a sua pele clara, os seus olhos castanhos e os seus lábios carnudos. Ficava horas em frente ao espelho; conversava com ele, dançava para ele e só falava dele, do seu reflexo.
O espelho, embelezado por uma clássica moldura em ferro, estava encostado a uma parede fria, pouco conversadora. Todos os dias, mais do que uma vez, perguntava ao reflexo “E eu? Como sou?” mas, todos os dias, o reflexo não o ouvia ou fingia que não ouvia. Sentia-se só e desprezado.
Um dia, o espelho enervou-se. Embaciou-se de raiva e afugentou o reflexo reflectido em si, bem como a sua pele macia, os seus olhos castanhos e os seus lábios carnudos.
Apesar de viver no lado do não-reflexo, o espelho queria acreditar que era mais do que um objecto sem corpo. Imaginava-se espadaúdo e musculado, com uma aparência própria, só sua.
Até ao dia em que o espelho arranjou a solução para o seu problema. Mesmo sabendo que o frigorífico, além de glutão, era grosseiro com toda a mobília da casa decidiu arriscar. Pediu-lhe delicadamente para andar dois passos para a sua direita. E assim que se aproximou, contrariado, o espelho apareceu reflectido na superfície branca do frigorífico. Não queria acreditar no que vira. Era impossível! Só podia! Estava virado do avesso, com uma peúga na cabeça e cabelos pretos nos pés. Cerrou os olhos, tombou para trás e nunca mais se levantou.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

meio-cadáver

enfiou a malha borbotada
comprimindo o arrepio
mas o acto não abafou
o autêntico desafio.

pois o lábio entorpecido
paralisado e amortecido.
foi incapaz de envergonhar
aquele frio abrutecido.

o tempo não cessava
e a paciência da velha açulava
“mas que raio vem a ser isto?”
perguntou exaltada.

enfiou outra malha
de cor negra, desarranjada
mas a mão enregelada
correu o corpo, agitada.

“mas que merda vem a ser esta?”
gritou para o espelho, embaciado,
e o espelho nada fez
senão mostrar-se desinteressado.

eu que olho para a velha
aflige-me a sua dormência
basta a chaga amargurada
chega o estado de latência.

o dipsomaníaco

vi aquele corpo letárgico
dar voz a um títere sôfrego, ascético
e sulquei-lhe a alma saqueada.

nefando.

ao meditar a excrescência do folículo
estranhei o seu candor crispado
e assente no céu como um safado,
ele - o dipsomaníaco - foi apedrejado
e no cume do montículo dilapidado.

nefando.

andava enfadado com o líquido desfeito.
decomposto pela ociosidade. afeito.
e assim que expeliu o ar, despeito
subiu os degraus do cadafalso. malfeito.

nefando.

e assim foi enforcado, insípido
perdido num pranto dantesco.
que desmedido sacrilégio frígido
fez sucumbir o nosso dipsomaníaco burlesco

O relógio na outra margem do rio

Era uma vez três irmãs que viviam numa casa muito pequena. A mais velha, Luciana, era muito alta e estava sempre a bater com a cabeça no tecto. Diana, a irmã do meio, tinha os pés muito grandes e, todos os dias, tropeçava nos cantos dos móveis da casa. E Belinha, a mais nova, via muito mal e nem as grossas lentes dos óculos a impediam de perder-se pela casa.
Já estavam deitadas quando alguém bateu à porta. Truz, truz! – ecoou pela casa. Era de noite e chovia a potes. Olharam umas para as outras, apavoradas, e emudeceram, pois sabiam que a noite pertence aos gatos pardos. Mas as pancadas na porta não pararam. Então, pé ante pé, Diana levantou-se da cama e afastou devagarinho a cortina florida da janela.

- É um anão! Parece estar cheio de frio, coitadinho. Vamos abrir-lhe a porta. De certo que não nos fará mal – disse.

- Nem pensar! Não são horas para receber visitas. Já é tarde! – contestou a mais velha.

- Mas e se estiver a precisar de ajuda? Devíamos ver o que se passa – convenceu Diana.

E assim foi... A Luciana, ao levantar-se, bateu com a cabeça no tecto e ganhou mais um galo; A Diana tropeçou no tapete e caiu em cima da estante dos livros; e a Belinha estatelou-se contra a porta do quarto, ficando para trás.

- Quem é? – perguntaram, com a voz trémula.

- Estou perdido e tenho muito frio, por favor, ajudem-me! – ouviu-se do lado de fora.

Abriram a porta, com cuidado, mas as bochechas coradas do anão logo enterneceram as três irmãs que o convidaram a entrar. Estava vestido com um enorme macacão azul e uma carapuça grená que parecia um cogumelo.

- Para agradecer a vossa hospitalidade, vou contar-vos um segredo. Mas têm que prometer que não contam a ninguém, senão... – disse o anão, aquecendo-se à lareira.

- Conta, conta, anão! – exclamaram as três irmãs em uníssono.

- Há muitos, muitos anos atrás, o Grande Mago dos Sonhos lançou um feitiço no cimo destas montanhas.

- Um feitiço? - perguntou Diana, com uma expressão sobranceira.

- Criou um relógio capaz de transformar os sonhos em realidade. Ainda hoje permanece escondido no tronco oco de uma árvore. Está aqui o mapa – tirando uma folha amachucada do bolso.

As três irmãs ficaram em êxtase. No dia seguinte, ainda o sol não tinha nascido, rumaram até ao cimo das montanhas para procurar o relógio.

- Olha, olha, ali ao fundo... Está ali a árvore que o anão falou!!! – gritou a Luciana, apontando para um tronco seco na outra margem do rio.

- E agora? No mapa não existe nenhum rio. O anão tramou-nos! – clamou Belinha.

O ânimo das três irmãs esmoreceu. Mas Diana logo teve uma ideia capaz de as levar até à outra margem.

- Estão a ver aquele sapo gigante? De certeza que aceitará ajudar-nos! – exclamou, aproximando-se devagarinho do animal que dormia uma sesta.

E assim foi... O sapo aceitou o pedido das três irmãs e, uma de cada vez, saltaram para as costas do sapo e atravessaram o rio. Descobriram, finalmente, o relógio mágico, banhado em ouro, e fizeram tal e qual como o anão lhes tinha dito. Rodaram os ponteiros retorcidos e enferrujados e marcaram as três horas. A Luciana pediu para ser mais baixa, a Diana pediu para ter os pés mais pequenos e a Belinha pediu para ver melhor.
Quando regressaram a casa, as três irmãs espantaram-se ao ver que saia fumo da chaminé. “Está alguém em casa”, pensaram e quando abriram a porta viram o anão de pijama refastelado no sofá da sala.

- Mas, mas... Conseguiram atravessar o rio? Encontraram o relógio? – perguntou, surpreso.

- Devias ter vergonha! Não és mais bem-vindo nesta casa! – apregoou Diana, enxotando o anão para fora com uma vassoura.

E nunca mais ouviram falar no anão charlatão que não acreditou na força e perseverança das três irmãs.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Lontra

Quiseram comer-me a cartilagem, aqueles monges safados que no outro dia se atravessaram no meu caminho! Ai se eu os apanho! Visitei o mar nessa manhã. Sentei-me na areia e abri os braços à lontra. Gorda e com um herpes no lábio. Quando olhei para trás e vi a minha cidade dentro de um cortiço em forma de estômago assustei-me. Parecia apertada e ofereci-lhe um sopro. Agradeceu-me e virou sapo e fugiu. Quando voltei, o mar tinha iniciado viagem. Ao longe gritava por mim, soltando vagas tristes. Mas ai aqueles monges!!! Sacanas dos velhos que me quiseram trincar a cartilagem! E os tijolos que caíram no prédio em frente? Ninguém os acode e tenho pena porque eram bons tijolos. Mas alguém faz alguma coisa por isso? Naquela manhã, cruzei-me com um ao virar da esquina. Pareceu-me material de qualidade, um bom chefe de família. Não me falou... é verdade... mas bolas!!! Era um tijolo!!! Não me lembro de acordar nessa manhã, nem de adormecer no dia antes. Mas lembro-me que nessa manhã me esqueci do casaco em casa e como estava frio resolvi pedir o pêlo de um gato vadio emprestado. Mas só de pensar nos sacanas dos monges sinto um arrepio na espinha! Nessa manhã, cacei um camelo aprumado que passeava uma boina turca na cabeça. Os seus cascos maçudos ainda me fizeram mossa na cabeça. Só não me lembro como essa manhã acabou...

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Desgraçado

desgraçado do que viu o porto
de sangue amorfo
beber-lhe o corpo desenxabido.
vivido e repetido pelo
círculo desgraçado que só é ciclo
quando a linha de volta beija
a reviravolta do tempo
que não volta sem se repetir
vivendo.
e o desgraçado,
que nasceu do chão
calçado com botas de cão,
a Ele – ao Tempo frustrado –
o desgraçado virou-lhe as costas
e nunca mais olhou para trás.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

o Texugo e o velho Cucu

O Texugo foi com a mulher à floresta encarnada procurar mantimentos para suportar o longo e penoso Inverno. Encontraram ervilhas, feijões verdes e sementes de girassol que deram para encher oito sacos de verga. Mas, sem darem por isso, o sol despedira-se ternamente dos vales, florestas e rios.

- Estou cansada e já anoiteceu. Por favor, deixa as ervilhas e vamos para casa - pediu a mulher do Texugo.

- Mas ainda não apanhámos o suficiente para dar ao velho Cucu. Vai para casa que eu continuo a trabalhar.

E assim foi. O sol deu lugar à lua, que deu lugar ao sol, que deu lugar à lua novamente. Dois dias passaram e o Texugo conseguiu recolher alimento suficiente para suportar o frio e dar ao Cucu que vive na árvore mais alta do bosque azul.

- Aqui tens as vinte sacas de ervilhas e sementes de girassol que prometi – gritou o Texugo.

- Demoraste muito tempo. Pensava que já não vinhas – disse o Cucu, arrogante.

- Eu nunca desisto. Sou persistente. Onde está a saliva de andorinha? A minha mulher está muito doente.

- És mesmo burro! Acreditaste mesmo que a saliva de andorinha cura todos os males? – falou o Cuco, largando uma enorme gargalhada que ecoou por toda a floresta.

Quando se apercebeu que tinha sido enganado pelo espertalhão do Cucu, o Texugo ficou bastante zangado e saiu da floresta a praguejar para os arvoredos.

- O Cucu vai-se arrepender do que fez – exclamou o Texugo ao entrar em casa.

- O que é que se passou? – disse a mulher com a voz limpa e segura.

- Estás melhor? Não acredito...

- Falei com o Peru que me receitou chá de erva preta e melhorei. Mas o que é que o velho Cucu aprontou desta vez?

- A história da saliva de andorinha...era mentira... Magano do Cucu.

No dia seguinte, o Texugo foi ter novamente com o Cucu.

- Ó Cucu? Estás por casa?

- Ora, ora, quem é ele... Pensei que estivesses chateado comigo. O que te traz por cá?

- Eu não sou de guardar rancor. Achei umas sementes deliciosas perto do rio. Queres provar?

- Hum... que interessante! – disse o Cucu pondo uma semente à boca - Sabe a pimento vermelho. Que delícia!

Passou-se um mês e o Texugo voltou à árvore mais alta do bosque e chamou pelo velho Cucu. Silêncio. Voltou a chamar mas nada, apenas silêncio. Quando se virou para retomar caminho, o Texugo assustou-se com a presença intimidatória do Cucu que gesticulava com as asas e picava encolerizado o tronco da sua árvore.

- Perdeste o pio, não foi? Pois é para aprenderes a não gozar com o sofrimento dos outros e a procurares o teu próprio alimento.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

A "descartabilidade" humana

Sinto-me usada, suja, conspurcada. Aquele que nunca se sentiu descartável que ponha o dedo no ar. Eu quero ver isso. Estou cansada. Estou profundamente magoada com os carris do comboio que se atravessaram no meu caminho e não me pisaram, os desgraçados. Sou incapaz. Peço aos outros que copulem mas ninguém o faz. Ninguém me ouve. A “descartabilidade” humana afecta-me mas não me mata. Mas afecta e muito. Não vale a pena fazer interrogações quando já conhecemos as respostas de trás para a frente e de frente para trás. Levar-me pela mornidão do Outono, pelas folhas carpidas, cujo queixume ninguém quer ouvir. Ouvidos moucos, caros semblantes de agonia, de tormentos risos emurchecidos ao sol.
Repito: sinto-me descartável, usada, suja, conspurcada.

A PRAGA

Tudo funcionava como devia funcionar – a chamada ordem das coisas, mutável, assente em terras movediças. Ora a vizinha arcava com as desculpas dos condóminos sobre o cheiro a mijo na entrada do prédio, ora o calceteiro brigava com o funcionário do Estado por este ter estacionado a viatura em cima do passeio em obras, ora o turista inglês, de mala às costas e mapa na mão, pedia indicações sobre o castelo de São Jorge.
Tudo funcionava como devia funcionar até que “o que comeu as duas Marias”, o rapaz das oficinas experimentais, foi mordido por uma cobra, mesmo ao largo do Rossio. O caso era inédito e dava pano para mangas. Não há memória de alguém ser atacado por uma cobra mesmo no coração de Lisboa. Mas, ao que parece, as coisas mudaram.

A história das duas Marias

Num dia quente, banal, igual a todos os outros, o rapaz passeava pelo Rossio de braço dado com as duas Marias, moçoilas robustas e rosadinhas, órfãs de mãe. Não se contentou com uma. Fez o que pôde para levar as duas a passear. E lá foram os três pavoneando-se pela cidade, ele de papo erguido e barriga encolhida, dentro de um pomposo fato castanho que pertencia ao seu pai; elas exibindo os bustos acentuados pelo decote dos vestidos colados ao corpo e rindo alto para chamar a atenção dos que caminhavam na rua. Mas o encontro não acabou bem, pelo menos para o rapaz. Decidiram parar para tomar café e conversar. Ao entrarem na pastelaria, todos os olhos caíram em cima das duas Marias, esplendorosos arquétipos de feminilidade. O empregado que os atendeu tremia ao anotar os pedidos no velho bloco e elas, as Marias, encantaram-se com o jeito desajeitado daquele garoto, vermelho que estava. O rapaz, claro, percebeu tudo. “Quem são elas para me desprezarem desta maneira?”, cogitou, indignado. E, sem meias medidas, levantou-se bruscamente da cadeira, entornando propositadamente os galões em cima dos vestidos das meninas, que se mostraram demasiado atrevidas para o seu gosto. Abandonou o café e nunca mais lhes dirigiu palavra.

Triste epílogo

O rapaz estava pálido e imobilizado. O veneno dispersava rapidamente pelo corpo, entorpecendo-lhe os músculos e provocando-lhe espasmos respiratórios. Assim que chegou ao hospital, foi imediatamente assistido por uma equipa técnica altamente qualificada no assunto. Tarde demais. O adversário adiantara-se ao roer-lhe as entranhas e o rapaz pereceu estendido na maca do hospital. Triste epílogo.
No dia seguinte, este acontecimento estranho foi relatado até à exaustão nos meios de comunicação (chupadores). “Víbora-cornuda ataca jovem em plena Lisboa”, fazia os cabeçalhos dos jornais. Na televisão, a ministra da Saúde emitia o alerta com uma expressão séria e preocupada, estimulando o pânico entre os lisboetas.
Carmo estava na cozinha quando o Manuel chegou a casa, já passava das dez da noite.

- Porque é que não me avisaste que ias chegar tarde? Estava tão preocupada contigo, homem. Ouviste as notícias?

- Qual delas? Há tantas por aí... Aquela do homem que morreu electrocutado ao tentar roubar fios de cobre? Ou aquela em que desapareceu a tartaruga do chafariz da aldeia de Cima? Para mim, esta é a melhor!!!

- Ai homem, homem, como é que te podes estar a rir numa altura destas? Anda uma cobra venosa em Lisboa, um rapaz já morreu e tudo.

- Isso é só para nos preocuparem, não vês logo? Acalma-te mas é e serve-me o jantar. Estou esfomeado! (Ao abrir a panela...) Caril de frango com quiabos? Outra vez Carmo? Já deito isto pelos olhos, francamente...

- Cala-te e come. Já não te posso ouvir com essa conversa, chiça!
Botas rijas de morder


Carmo acordou sobressaltada a meio da noite. Olhou para o lado e a expressão serena de Manuel acalmou-a por instantes. Ao entrar na cozinha, o suor escorre-lhe pelo rosto e as mãos tremem ao pegar no copo de água. Recorda-se apenas de partes desfocadas do sonho, paradas no tempo. A casa sem mobília, sem luz ao fundo do corredor. O ritmo dos guizos incandescentes ao longe e uma sensação peçonhenta na pele. Grunhiam-lhe ao ouvido mas parecia surda.

- O que estás a fazer acordada a estas horas? Desde que ouviste aquela notícia na televisão que estás assim – disse Manuel, entrando de rompante na cozinha.

- Às vezes ponho-me a pensar o que vai ser de nós. As contas para pagar, a tua doença e agora esta história das cobras e das botas. Só de pensar nisso fica toda arrepiada.
- Deixa-te de disparates. Não tens motivos para estar assim. Quanto às botas, não te preocupes, já tenho tudo controlado. Amanhã cedo resolvo esse assunto.

- Fico mais descansada.

- És uma mulher forte, desembaraçada, e é por isso que te admiro tanto. O que tu precisas é de uma boa noite de sono. Vá, vê se dormes.

- - -

O eléctrico amarelo com destino à Ajuda inicia viagem. O som das rodas a roçar nos carris encoraja os putos que se empoleiram na parte traseira do transporte público. Os lugares sentados estão todos ocupados e Manuel encosta-se junto à porta de saída. O cheiro do vinho carrascão que alguém derramou no chão provoca náuseas à senhora de cabelo eriçado dos lados, com laivos dourados nas pontas estragadas. Ao fundo, no lugar encostado à janela, do lado direito de quem entra, está um senhor com um chapéu de palha na cabeça, com feridas abertas nas mãos e o rosto encarnado, ébrio. Perto de Alcântara, Manuel é surpreendido pela entrada de dois fiscais, direitos e aprumados.

- O seu bilhete, por favor. – gaguejou o mais novo, inexperiente.

- Está aqui. Tudo em ordem? – perguntou o Manuel, em tom de gozo.

- Sim, está. – respondeu o fiscal, dirigindo-se embaraçado para o homem de barba cinzenta – O seu bilhete, por favor.

- O meu nome é Jacinto Rodrigues e gosto muito de pombas. As putas só têm o que merecem – balbuciou, sem levantar os olhos sob o efeito do vinho que não desperdiçara.

Uns bancos mais à frente estão duas senhoras emproadas, vestidas com longos casacos de pêlo branco. Vêem carregadas de sacos e com os pés ainda a latejar da penosa corrida para apanhar o eléctrico. Falam e riem alto desdenhando as vidas alheias e captando a atenção de todos os passageiros, incluindo a de Manuel. O único que não olhou foi Jacinto. Não se importava com isso.
Ao deparar-se com o ajuntamento de pessoas irrequietas na farmácia, os nervos de Manuel dispararam. Esta era a única farmácia em Lisboa que ainda não tinha esgotado o stock de botas. Após aproximadamente duas horas, o número de Manuel é finalmente evocado por um responsável de farmácia.

- Muito bom dia! Quero duas botas protectoras. Umas para mim e outras para a minha mulher. Números 38 e 43, se faz favor.

- Entendido. Tem preferência na cor? Temos em preto e em verde.

- Verde. As duas. Obrigado.
A motorizada vermelha


Manuel cresceu numa quinta com os três irmãos, nos arredores de Lisboa. Os mais novos, João e Duarte, emigraram para França, logo após a Revolução dos Cravos e Manuel não os vê desde então. O mesmo acontece com o irmão mais velho, Hilário. A última vez que o viu, se a memória não lhe falha, foi no Outono de 86. Encontraram-se por acaso em Massamá. Estava um dia quente e chuvoso e Hilário parecia bastante empolgado por ver o irmão. Apesar de breve, Manuel nunca mais se esqueceu daquele encontro. Nesse dia, ao contrário dos outros, Hilário parecia alegre e bem-disposto. Confidenciou-lhe que tinha conhecido uma rapariga e que estava apaixonado. “Ela é prostituta”, segredou-lhe ao ouvido e corou. Manuel não disse nada. Não teve tempo pois Hilário foi rápido na despedida, tendo gritado apenas do outro lado do passeio: “Se perco o comboio, estou tramado com ela! Dá um beijo meu à Carminho”.

- Onde é que está a minha camisola preta? - perguntou Manuel impaciente.
- Qual? Aquela de malha grossa? Está no cesto da roupa lavada. Vai lá buscá-la e veste-te rápido. Não quero chegar atrasada.

(continua)

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Duas camas em pólvora

Era uma vez duas camas que segredavam silêncios resguardados nas paredes do quarto maior da casa. Quase em sussurro, abriam os trâmites da memória desnudada e descobriam-se sozinhas, perpetuando-se.
O mundo das camas-amantes era aquele quarto, antigamente ocupado por um casal de meia-idade, ele plácido e impávido ela altiva e distante. Ambos se recusavam a afugentar as rugas dos velhos lençóis, a trocar as fronhas amareladas das almofadas ou a fazer uma amável dobra no lençol. Eram inquilinos frios, amantes desinteressados, seres que fraquejavam ao mínimo impulso de violência.
Começaram por discutir sobre insignificâncias mundanas – os dois amantes distantes. Depois resolveram, por mútuo acordo, afastar as camas (que eram duas para fazer uma). Depois separaram-se e puseram a casa, toda mobilada, à venda. Sem escrúpulos pelas camas que se amavam, odiaram-se até que a morte veio e lhes sugou o suco da vida.
As duas camas-amantes sentiram-se usadas e descartáveis, até mesmo corrompidas. Já nada havia a fazer senão devorarem-se ainda mais, com maior intensidade, com força maior, com vigor acrescido, com pleno sentido de consciência do que significa o amor entre duas camas em pólvora.
O sol começa a derreter-se. Digestão lenta e atordoante. O vento desconcertante toca piano do lado de lá da janela e o ranger das vidraças faz os pés das camas gemer; trocam carícias e enroscam-se na colcha rendilhada, pirosa, muito floreada. Entregam-se ao prazer ordinário e sucumbido que mora para além do assédio binário, uma vez cedido.

sábado, 3 de outubro de 2009

Os suplícios do Josué

O antigo homem dos sete ofícios
Muito corado e envergonhado
Carregava aos ombros demasiados suplícios
Fúnebres trajes abandonados.

Ao Josué deram liberdade e poder de escolha,
Com consciência fonológica,
Mas tudo à sua volta pedia a recolha
Da sucumbida experiência analógica.

Um, dois, três degraus
Subidos pelo Josué
Comidos por leões de crateras
Ao longo do torso torto morto.
Da poesia dos astros incólumes.
Do rugido do rei roxo
Que é sagrado purpúreo púlpito.

“Quem sou eu?” – gritou o Josué em cima de tábua instável.

A não-resposta disse que sim
ao homem dos sete ofícios
iludido pelo doutor petório
e pelo sentido notório
da existência dos anjos analfabetos.

“Suplícios, suplícios!” – gritou o Josué criando alarido.

“Deram-me tantos suplícios!” – chorou o Josué numa cena comovente.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

O sofá perfeito (continuação)

No dia seguinte, o Meia-Cuca acorda com o toque alvoraçado do despertador. Sonhou com o tetravô sentado de pernas cruzadas no quintal a chorar compulsivamente; com a tetravó a correr louca pela casa; com gatos desvairados à caça de formigas gigantes. O Meia-Cuca só não se lembra de que foi ele o responsável pelo pranto do tetravô, pelo pânico da tetravó, pela caça felina às formigas. Adiante.
Até hoje, o Meia-Cuca foi sempre um trabalhador pontual. Desde o início que caiu nas boas graças do patrão. Respeita na íntegra os horários de trabalho, obedece calado e passivamente a ordens disparatadas. Não questiona, executa. Mas logo hoje atrasa-se. Pobre augúrio.
Quando chegou do trabalho, exausto, despiu rapidamente o fato quente e pesado do trabalho, numa tentativa de se livrar do peso do dia. Ouviu longas reprimendas do patrão, foi alvo de chacota entre os colegas de trabalho, atabalhoou-se na entrega de documentos importantes.
Ao abrir a porta da sala, que fechara propositadamente na noite anterior, o olhar do Meia-Cuca embate naquele sofá castanho misterioso, cujas costuras estão gastas e ao qual faltam dois dos quatro pés de apoio. Senta-se, comodamente, e só acorda sete dias depois.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

O sofá perfeito

O Meia-Cuca nem quer acreditar. Será possível um homem de meia-idade, com meia cabeça e meio coração, receber em casa o sofá que pertencia ao seu tetravô em pleno mês de Agosto? Quando a campainha tocou, o Meia-Cuca ainda estava vestido com o fato do trabalho, pesado e quente. “Quem é?” perguntou, encalorado. “Encomenda para o Sr. Meia-Cuca”, ouviu-se do outro lado. Pediu-lhe que assinasse uns papéis amarelos, dando-lhe de seguida a carta amarrotada pelos serviços postais. O carteiro lamentou o sucedido e o Meia-Cuca fechou-lhe a porta pensativo. “Ora esta... Quem diria... O sofá do meu tetravô. Só é pena não combinar com a mobília da sala. Lixo, está dito!”. Apressou-se a deixar o sofá ao lado do caixote do lixo e voltou para dentro. Só quando se sentou na sua poltrona, uma aparatosa cadeira de pele negra, é que o Meia-Cuca se lembrou da carta esquecida em cima do frigorífico.
“Olá Meia-Cuca. Como tens passado? Escrevo bastante entusiasmada por saber que o último desejo do teu tetravô cumpriu-se finalmente. Já não era sem tempo, aliás... Mas as burocracias da herança atrasaram a entrega. Espero gostes da surpresa.
Um beijinho da bisavó Clotilde!”´
O Meia-Cuca nem quer acreditar. Além da dor de consciência por se ter livrado daquele sofá hediondo, sente agora pena pela bisavó Clotilde que sempre foi uma pessoa bastante prestável. Levantou-se do cadeirão, num ápice, e saiu porta fora. Receava que algum vagabundo, filho de ninguém, se apoderasse do sofá que abandonara há minutos. Contudo, o sofá continuava no mesmo sítio. Intocável. Intacto. Incólume. A custo pegou no sofá encardido e transportou-o novamente para cima. Primeiro pensou colocá-lo junto à janela, depois ao lado do móvel da televisão e ainda encostado à parede mestra. Não conseguia decidir. Já era tarde e o Meia-Cuca estava exausto. "Vou dormir. Amanhã logo se vê."
(continua)

A centopeia que comeu o gato

"Se pensas que me esqueço disto estás muito enganado ó Zezinho!", magicou o gato do Zé Manel depois de um miar mirrado. Virou-lhe costas, afoito, e arregaçou a parte traseira emproada. “C***** do gato, hein...” gritou, por sua vez, o Zé Manel, um senhor atrevido e bem-disposto, depois de encolher os ombros em sinal de desprezo e fechar a porta com brutidão. A casa estava agora entregue ao felino de pêlo malhado, cinzento, mais forte e espesso na cauda. Tinha o chão aos seus pés. Primeiro, espreguiçou-se. Depois bocejou e arqueou a coluna encarquilhada, passadiço locomotivo do tempo. Em contrapartida, sempre teve pernas altas e esguias, como as de um flamingo cor-de-rosa. Em tenra idade, o gato do Zé Manel era acanhado e inseguro. A asma impedia-o de sair vitorioso das caçadas nocturnas no bairro e de inalar com profundidade a brisa fresca e revigorante da manhã. Com a casa vazia, entreteve-se a debulhar uma centopeia, dando-lhe patadas leves e encostando os bigodes às duas antenas, assustando-se e eriçando o pêlo pardo, como faz o leão quando avista um elefante. Mas cansou-se e caiu para o lado como um derrotado de guerra e esticou-se ao comprido na pedra fria. A perna esquerda do animal de pêlo não aguentou o desgaste e caiu por terras de senhora majestade. Esborrachou-se ao comprido e era agora alimento para o quilópode esfomeado.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

I ACTO - Amanhã será...

Personagens (Por ordem de entrada em cena)
ELA
ELE
O HOMEM DOS BOLSOS OCOS


No centro da sala, que descai ligeiramente para a direita, está uma mesa quadrada, simples, castanho-âmbar. Não existem quadros pendurados nas paredes, a televisão está ligada à corrente, mas não tem sinal. O rádio está avariado faz meses. Ou então precisa de pilhas. Que importa isso.
Ouve-se uma conversa em sussurro. Iluminação do palco. Amarela-alaranjada. Ela e ele estão de pé, frente-a-frente, no canto direito do palco, ele de costas para o público. Ela chora, quase compulsivamente, embriagada pela dor, contorcendo-se e movendo-se vagarosamente. Dão as mãos e num acto trôpego e cavalgante de ventos vindos do Sul abraçam-se.



ELA (acabrunhada)
Amas-me?

ELE
Já te disse que sim. Tens de parar de perguntar isso. Começa a ser irritante.

ELA
Sabes, hoje vi o sol nascer por detrás da cómoda que atravanca a porta de dentro do quintal. Quando éramos mais novos, fazíamos sempre isso. Esgueirávamo-nos da atenção dos vizinhos, cobríamo-nos com o lençol velho da Tia Albertina e acompanhávamos o passo lento do Sol, dentro do olhar um do outro. Lembras-te?

ELE (desinteressado)
Sim, lembro. Ainda há leite no frigorífico?

ELA
Acho que sim. Vou ver.

O telefone de casa começa a tocar. Estridente. Ela sai para comprar leite e ele pega no telefone, mas hesita em puxá-lo ao ouvido. Ao quinto toque, atende.

ELE
Estou sim? Sim, muito obrigado. Sim... é o próprio. Não tem problema nenhum, não, não interrompeu o almoço. Sim, já almocei, não se preocupe. Mas diga, diga,...

O HOMEM DOS BOLSOS OCOS
Espero que não me leve mal mas sabe, há tempos pus-me a pensar como será ser-se peludo, mas assim mesmo muito peludo. Essas pessoas, deixadas à sombra de Deus, coitadas, devem suar imenso. Até de noite. Consegue imaginar tanto desconforto? Bem, adiante.

ELE
Sim, adiante.


O HOMEM DOS BOLSOS OCOS
Por vezes tenho tendência a falar pelos cotovelos... A minha mãezinha dizia que... raios lá estou eu outra vez! Ora, muito bem, vou directo ao assunto: o senhor é peludo?

ELE
Mas que raio?! Tenho alguns pêlos, sim. Mas não são muitos. Alguns, mais na zona púbica.

O HOMEM DOS BOLSOS OCOS
Tenho a solução ideal para si. Um tratamento 100% natural, pode confiar no que digo, que resolve em apenas, repito, em apenas, duas semanas o problema dos pêlos.

ELE
De facto, deve ser uma sensação agradável não ter pêlos entranhados na pele. E quanto custa esse tratamento?


O HOMEM DOS BOLSOS OCOS
Para si, 100 euros certinhos. Que me diz? Aliciado?

ELE
Bastante. Pago por multibanco ainda hoje, pode ser? Já tenho o NIB anotado, sim, não se preocupe. E quando recebo o produto?

O HOMEM DOS BOLSOS OCOS
Amanhã por volta da hora do almoço. Combinado?

ELE
Tudo certo então. Amanhã será...

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Sou biólogo e viajo muito pela savana do meu país. Nessas regiões encontro gente que não sabe ler livros. Mas que sabe ler o seu mundo. Nesse universo de outros saberes, sou eu o analfabeto. Não ser ler sinais da terra, das árvores e dos bichos. Não ser ler nuvens, nem o prenúncio das chuvas. Não sei falar com os mortos, perdi contacto com os antepassados que nos concedem o sentido da eternidade. Nessas visitas que faço à savana, vou aprendendo sensibilidades que me ajudam a sair de mim e a afastar-me das minhas certezas. Nesse território, eu não tenho sonhos. Eu sou sonhável.

In "E se Obama fosse africano? e outras intervenções", de Mia Couto.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

A existência de uma árvore
não pode ser apenas as cerejas
(o espectáculo público do seu fruto)
nem o bicharoco que de noite as ataca.

In “O Livro dos Mortos”, de Fernando Grade, Edições Mic, 3ª Edição, Abril de 1985

O funeral

Os sinos da igreja já anunciaram a morte e a música fúnebre embala a marcha lenta das pessoas até ao pequeno espaço cavado na terra.
O aspecto sombrio da mãe que procura conforto num cobertor de lã enche todos de pesar. Sente-se o peso da perda, a irremediável frustração do homem face à morte, inevitável. Hoje, o funeral veste-se da decadência dos que o assistem sem armas às costas, nem espadas em punho. Pairam nuvens no céu e o vento nem se mexe: o dia envergonhou-se perante tamanha tragédia.
Num momento de silêncio, ouve-se ao longe o latido de um cão vadio que entra desvairado no cemitério, pulando campas e pisando pretensiosas coroas de flores. O padre, manifestamente irritado com o comportamento do animal, apressa-se a enxotá-lo dali para fora. “Que vergonha”, disse a senhora emproada do chapéu de aba larga. “Alguém que detenha esse arruaceiro” grita o senhor com a bengala ao alto.
Mas o burburinho que nascia agora entre o grupo fúnebre parecia excitar ainda mais aquela pobre criatura de Deus. Imprevisivelmente, o animal pára junto ao pequeno buraco de terra. Ninguém ousa abrir a boca; nem mesmo o padre. Por momentos, a mãe deixou de saber porque razão está vestida de preto, enrolada num cobertor de lã. Com a língua de fora, o cão ofegante curva as patas traseiras e alivia-se. Ali, mesmo em frente à campa, à mãe e ao padre.
Terminado o serviço, o cão sai do cemitério da mesma forma que entrou. “Seu desavergonhado”, gritou o padre. A cerimónia prosseguiu e o bebé foi, por fim, enterrado.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Não sonho com um mundo onde a religião deixe de ter um lugar, mas sim com um mundo onde a necessidade de espiritualidade esteja dissociada da necessidade de pertença. Um mundo onde o homem, continuando embora ligado às suas crenças, a valores morais eventualmente inspirados num livro sagrado, não sinta mais necessidade de se juntar ao exército dos seus correligionários. Um mundo onde a religião já não serviria de cimento a etnias em guerras. Não basta separar a Igreja do Estado, tão importante como isso seria separar o religioso do identitário. E justamente, se se quiser evitar que esta amálgama continue a alimentar o fanatismo, o terror e as guerras étnicas, será necessário poder satisfazer de outro modo a necessidade de identidade.

In "As Identidades Assassinas", de Amin Maalouf

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

A Cândida e o Luís

Quando se achou vento e seguiu, Cândida corou as faces lisas. Há cerca de dois dias, cruzou-se com o Luís na rua. Sorriu-lhe, embaraçada, mesmo tendo os lábios dormentes. “Claro!”, pensou. “Não me viu de certeza...” Quando viu o Luís, Cândida corou com o vento. Sorriu, com os lábios dormentes e “Claro!”, pensou. “Não me viu de certeza...” Quando a Cândida corou de vergonha, sorriu. E o vento levou-a. Coitada. Mesmo à beira do Luís.
O Luís, por outro lado, corou as faces tremidas e baixou a cabeça, embaraçado. “Claro!”, pensou ele. “Não me viu de certeza...”. Cruzaram-se na rua. A Cândida e o Luís. Coraram e sorriram e pensaram “Claro!”, “Não me viu de certeza...”

terça-feira, 7 de julho de 2009

Os dois rapazes

Possivelmente um mês antes, dois rapazes do interior tomaram conhecimento de um concurso de talentos a realizar-se na sua cidade natal. A notícia fê-los abraçar-se com ternura. No dia seguinte, ainda de madrugada, apanharam o primeiro comboio com o destino imposto. Depois de uma viagem que durou dias, numa carruagem que não permitia esticar as pernas dado o número de passageiros, os dois rapazes de mochila às costas esgueiraram-se pela porta de saída e vaguearam horas pela cidade encenando capricórnios descomplicados por natureza.
O estômago apertado incitou-os a entrar numa taberna pequena. Os cornos de javali e as cabeças de veado pendurados nas paredes gastas do estabelecimento provocaram-lhes arrepios secos que pioraram quando avistaram o senhor que estava atrás do balcão. Um vulto de pessoa desnorteante, tapada por um avental sujo e uma touca branca, exagerada para a situação. Depois de alguns segundos em silêncio, o irmão mais velho acabou por pedir dois shots de vodka. O senhor de avental acenou positivamente com a cabeça e enquanto enchia os copos gabava-se do facto de muitos terem sucumbido ao poder daquela bebida caseira. Meio aos tombos, tropeçando em pedras e fintando velhotas carregadas de sacos, os irmãos abandonaram aquela taberna inóspita e começaram a correr para a apanhar o eléctrico que passava ao fundo da avenida.
O mais novo olhou para o relógio. Tinham exactamente uma hora para chegar ao local antes que as audições fechassem. Mas no segundo antes do primeiro colocar o pé no degrau do eléctrico, ouviram-se três tiros do outro lado da rua. Todos estagnaram. O condutor, os passageiros, o chão.

(continua)

Sem apregoar nada

Tirou os óculos. Desabotoou a camisa.
Descalçou-se e permitiu que as calças caíssem no chão.
Estava agora nu à minha frente,
transparente e aparentemente lúcido.
Repeti para mim mesma que aquilo era apenas
um acto de rebeldia e que não havia razões
para me preocupar.

Enganei-me.
O rapaz, que entretanto se abraçara a um poste,
despejava conversas sem sentido que
roçavam a loucura.
Queria ser tudo, sem apregoar nada.
Amava tudo ao mesmo tempo que odiava todos.
Repentinamente, a conversa foi interrompida
pelo poste que agora era eu.
Abraçou-me com força e despediu-se.

O melro que abandonou as florestas para se transformar num pássaro citadino

No que diz respeito ao planeta, esta invasão do mundo do homem pelo melro é incontestavelmente mais importante do que a invasão da América do Sul pelos Espanhóis ou do que o regresso dos Judeus à Palestina. A modificação das relações entre as diversas espécies da criação (peixes, pássaros, homens, vegetais) é uma modificação de ordem mais elevada do que as mudanças nas relações entre os diferentes grupos de uma espécie. Que a Boémia seja habitada pelos celtas ou pelos Eslavos, a Bessarábia conquistada pelos Romenos ou pelos Russos, à Terra tanto lhe faz. Mas que o melro tenha traído a sua natureza original para seguir o homem no seu universo artificial e contranatura é um facto que já altera alguma coisa quanto à organização do planeta.
No entanto, ninguém ousa interpretar os dois últimos séculos como a história da invasão das cidades do homem pelo melro. Somos todos prisioneiros de uma concepção pré-estabelecida do que é importante e do que não o é, fixamos sobre o que é importante olhares ansiosos, enquanto, furtivamente, nas nossas costas, o insignificante conduz a sua guerrilha, que acabará por alterar subrepticiamente o mundo e atacar-nos de surpresa.

In O Livro do Riso e do Esquecimento, Milan Kundera

quinta-feira, 2 de julho de 2009

A porta

Vi um homem atordoado pelas luzes. Esperneava. Esbracejava. Inclinava a coluna contra o carro para não sentir dor. Só depois percebi que o homem estava direito, sentado em cima do carro. Sóbrio. Olhei para mim e andava à roda no parque da cidade. Via dedos gigantes atravessar pontes de vidro e galinhas feitas pardais anões.
Não! - pensei eu. Levei o dedo indicador à boca e emiti um runhido estranho, a saber a porco.Só depois percebi que estava sentada na cadeira do meu quarto. Com os pés assentes na secretária da minha imaginação que deixou de ser secretária para passar a ser mesa. E depois sofá, seguido de cama e lençol. E quando dei por mim estava transformada em bebida no centro do quarto, prestes a conhecer a vida nos tijolos que me protejem do mau tempo. Da chuva e do vento. E às vezes dos vizinhos. Gosto deles porque me dão de comer. Todos os dias, a vizinha do sexto andar traz-me as sobras do jantar. Às vezes peixe, outras carne. Nunca marisco, a forreta. Ainda assim, cumprimento-a sempre com um sorriso convincente e um forte aperto de mão. Agradeço a refeição e fecho a porta para não ser incomodada.

O caixote do lixo

Aos homens da minha terra, escrevo e vivo sob a eterna mente de ser, estar, agir. Querer. Vejo crianças que correm para não matar o bicho que vive numa garrafa de plástico meio cheia de coisas, artimanhas. De manhã bem cedo atravesso o rio de botas e cumprimento os caixotes de lixo.
Era uma vez um caixote de lixo meio vazio de coisas, estranhas, dos outros. Deu-me os bons dias e despediu-se com um sorriso envergonhado. À sua frente, não estavam nem cadeiras nem frigoríficos antigos. Nem facas usadas, nem latrinas. O exterior cheirava a rosas (?) e pedia para ser incomodado e abraçado. As rodas traseiras estavam oleadas, frescas como um lírio que tresanda a espirros de outrém bem-vindo.
Embaraçado, o caixote do lixo pediu-me desculpa e fechou a boca. Ficou vazio de palavras, cheio de tesão nas beiças verdes largas. E então envergou-se. Vergou-se. Derreteu e vendeu-se ao chão - miserável o cabrão. Desleixou-se ao cair em si, atirando-se para dentro e não encontrando saída aberta.
A direcção dos caminhos opostos é complicada. Fico desnorteado pela estrada que conduzo e escrevo - eventualmente numa rua envenenada por fora - e decido pôr creme nas costas para acalmar a pele. E no meio disto tudo pergunto-me porque é que sobem montanhas sem pés. Só com braços e pescoço para se inteirarem do que se passa do outro lado da parede crua. Sentem corpos nus a roçar nos cantos frios da sala, gemidos que atormentam o lugar íntimo de uma mulher. Qualquer.
À vida que gira em torno da sedução porque somos todos criaturas sedutoras. Passamos a vida a pedir atenção. Ajoelhamo-nos para que reparem em nós e não conseguimos deixar de rir quando nos respondem finalmente. Eu transpiro sexo. Eu preciso de sexo. Ninguém vive sem SEXO. E quem vive, vive ao lado.

terça-feira, 16 de junho de 2009

Boca por turnos

Sucar alvitrando o peso dos números em numeração romana, provinciana, sucata de peças esquecidas, desconhecidas por ninguém; alguém que solte cordas de pêlo morto e beba o leite da vaca que pasta no meu campo, aberto a todos mas vazio como a cabeça de um alce cansado dos cornos. Conversa cravada no cravo espinhoso do animal desavergonhado que come pasta amarela para endurecer o pote de verga escura. Folhas brutas ao sol. Pancadaria por um mil folhas. Polícia presa na liberdade dos outros; atropelada pela psicologia das emoções dos transeuntes conscientes da dimensão do céu. Poderei esquecer o rugido que afugenta o espírito e condena os outros a uma fuga impossível, a um espaço pequeno?

O milionésimo

quando virou à esquerda
e entrou na direita
encontrou-se numa colina dura
num riacho curto
numa casa habitada
num anfiteatro ocupado

pede pés suculentos de poeira
narinas sujas de giz
joelhos grossos
que sabe que existem
pela simples existência inerente
pela respiração calma
reflectida
pelo suor que escorre
no corpo feito de tinta

pobre augúrio de cigarras
corrigidas ao som do maestro
como flores de cera quente
enxuvalhadas num copo doce

altas penedias
baixos abismos

talvez o milionésimo de segundo
que antecede a morte
seja o único semelhante a todos.
A caixa de fósforos ergueu-se firme sobre o estrado de madeira e deu à luz milhões de fósforos nus no monte de palha seca.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Vasquinho à janela (continuação)

Quando o senhor de camisa acertada acenou, o Vasquinho assustou-se e esgueirou-se para debaixo da cama. Questionava-se porque estaria um senhor de camisa lisa, sentado num cadeira suspensa no nada, mesmo em frente à sua janela. Isto porque sempre que pergunta à mãe - "e hoje já posso voar?", acaba por se resignar à sua condição demente e acaba o dia deitado de pernas para o ar a olhar para o tecto. E, agora, mesmo em frente à janela do seu quarto, está um senhor com sobrancelhas farfalhudas, a pedir solenemente para falar com ele.
- "Talvez só quer bricar comigo", pensou o Vasquinho. E assim saiu devagar do esconderijo forçado e aproximou-se da janela.

- Ora viva, meu bom rapaz!
- Olá!
- Sabes o que é que acontece quando pensamos muito numa coisa?
- Não.
- Nada.
- Mas afinal quem é o senhor?
- Eu sou o Vasco.

O Vasquinho não conseguiu esconder a contentação por saber que o senhor tinha o mesmo nome que o seu e deu pulos de alegria.

- Temos o mesmo nome!
- Eu sei.
- Como é que sabe?
- Eu sou tu.
- Eu? Tu? Quem? Eu?

Os gritos da mãe ouviram-se em todos os cantos da casa. Parecia zangada porque a loiça suja do almoço continuava por lavar. Resignado, o rapaz despediu-se do Vasco e fechou a janela.
(continua)

Camponeses ao sol

O sobral do antigo testamento está agora entregue a criaturas esquivas armadas em fogo quente. E pelos planos vazios de púcaros sóbrios encantam os que não temem o nada. Pudera eu sentir-me completamente só e comer carcaças de pão duro na madrugada de um dia cinzento.
Aos fósforos apeteceu-lhes mergulhar na noite bela e ser pombas para rasgar o céu laranja e ouvir a ovação estridente dos camponeses que, lá em baixo, beijam campos de trigo verde. Não. Não há nada mais bonito do que um campo de trigo verde amado por camponeses queimados. Pudera eu ser terra fértil e húmida só para ver os seus rostos felizes.
Nascem em mim camponeses de corpo feito e de malas às costas. Coitados.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Vasquinho à janela

Sempre que perguntam ao Vasquinho porque não gosta de estar à janela, as suas bochechas ficam tão vermelhas e as pernas tão bambas que acaba por se derreter e entranhar nas frexas da memória daqueles que lhe fazem a pergunta.
A história começa quando tinha quatro anos de idade. A mãe sempre o precaviu dos perigos associados às janelas mas o Vasquinho, que sempre foi um miúdo do contra, desvalorizou os avisos maternais e empoleirou-se. E o que viu foi aterrorizador.

(continua)

Estrada das papoilas rubras

Quando o sol está baixo, o soldadinho de chumbo - o Vasquinho - atravessa o rio descalço para procurar bivalves escondidos atrás das rochas. Às vezes encontra mesmo maços de espermatozóides absurdamente grandes, gigantes, que estorvam o caminho às sardinhas. Dão todos as mãos em tom de perdão por sentirem o ar roçar nas pernas do Vasquinho.

- Atirem-no da ponte rápido. Eles estão a chegar - gritam exaltados.
- Estou perdido! - desabafa a vítima.

Pedem-lhe para repetir a estrofe vazia que disse há instantes. Recusa e enumera temas de conteúdos chatos, espalmados, chapados pelas mãos duras do Vasquinho.
Ó Vasquinho!!!
Ó Vasquinho!!!
Encosta-te à proa do barco e descansa. Desiste. Bebe à saúde do teu estômago que está vazio e embebeda-te. O álcool aninha-se no interior e combina o movimento circular com a cabine do senhor que vende robalos ao virar da esquina.
Decidem deixar o Vasquinho no meio de uma estrada sem início coberta por papoilas
rubras e girassóis.
Sozinho, o Vasquinho ficou a chorar.

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Quando o camionista estendeu a mão para auxiliar o menino caído no chão, pensou duas vezes e hesitou. "Quem sou eu senão um monte de conselhos desapropriados à ocasião criada exclusivamente por mim?"
Então aí acobardou-se e virou costas. Inclinou ainda a cabeça para ver o que se passava atrás de si mas o homem continuava preso ao chão. Deu mais dois passos e parou novamente. Decide olhar mais uma vez e os olhos enchem-se de lágrimas.

- Precisa de ajuda? - disse-lhe estendendo-lhe ingenuamente a mão.

- Estou a dormir. Deixe-me em paz! - responde rabugento.

Ora bolas!

sábado, 6 de junho de 2009

Mar de cinzas

Quero ser tua,
ó mar ressurgido das cinzas.
Revoltado.
Quebrado tormento a que me entrego,
naturalmente nua.
Um mar assimilado por substâncias ilegais
que atingem a ebulição
encarnada por ti.
Um mar que liberta gazes desnudados
que detonam o risco branco no monte de cinzas.
Revoltado.
Quebrado pelo vento, ar e céu.
Ó mar ingénuo, arrogante,
Por vezes impiedoso.
Revolto-me contra ti.
Sopro-te o sal que te dá firmeza
E alimento-me dos peixes por ti nascidos
Navios naufragados e almas perdidas.
Ó mar bravo,
quando deixares de querer ser escada,
e invocares-me como tua pertença,
dá-me voz e serei tua.

Langonha

- Por favor...
- Enquanto não aprenderes a usar o papel higiénico não vais.
- Vá lá...
- Não repito mais vez nenhuma. Porcalhão!

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Estatuto do vinho

de Pablo Neruda

Quando em regiões, quando em sacrifícios
manchas sanguíneas como chuvas caem,
o vinho abre as portas com assombro,
e no refúgio dos meses vai voando
seu corpo de empapadas asas rubras.

Os pés roçam nas telhas, nas paredes
com humidade de línguas submergidas,
e sobre o fio do dia desnudado
caem em gotas as suas abelhas.

Eu sei que o vinho não deserta aos gritos
quando chega o inverno,
nem se esconde em igrejas tenebrosas,
buscando o fogo em panos despenhados,
mas voa, sim, sobre a estação,
sobre o inverno que chegou agora
com um punhal entre os cílios duros.

Eu vejo vagos sonhos,
eu enxergo longe,
e olho à minha frente, além dos vidros,
reuniões de roupas infelizes.

A elas a bala do vinho não chega,
a papoila eficaz, o raio rubro
morrem afogados em tristes tecidos,
e derrama-se por canais solitários,
por húmidas ruas, em rios sem nome,
o vinho amargamente submergido,
o vinho cego e solitário e só.

Eu estou de pé na sua espuma e nas suas raízes,
choro na sua folhagem, nos seus mortos,
acompanhado de alfaiates caídos
no meio do inverno desonrado,
subo por escadas de humidade e sangue
tacteando as paredes,
e na agonia do tempo que chega
sobre uma pedra eu ajoelho e choro.

E para túneis agrestes me encaminho
de metais transitórios revestido,
para adegas vazias, para sonhos,
para betumes verdes que palpitam,
para ferrarias desinteressadas,
para sabores de lodo e de garganta,
para imperecíveis borboletas.

Então surgem os homens do vinho
vestidos com vermelhos cinturões
e chapéus de abelhas derrotadas,
e trazem taças cheias de olhos mortos,
e terríveis espadas de salmoira,
e com roucas buzinas se respondem
cantando cantos de intenção nupcial.

Eu gosto do canto rouco dos homens do vinho,
e do ruído de molhadas moedas sobre a mesa,
e do cheiro de sapatos e uvas,
e de vómitos verdes:
gosto do canto cego desses homens,
e do som de sal que martela
as paredes da aurora moribunda.

Falo de coisas que existem. Deus me livre
de inventar coisas quando canto!
Falo da saliva derramada nas paredes,
falo de lentas meias de rameira,
falo do coro dos homens do vinho
batendo no caixão com um osso de pássaro.

Estou no meio desse canto, no meio
do inverno que rola pelas ruas,
estou no meio dos bebedores,
com os olhos abertos para esquecidos lugares,
ou recordando um deliberante luto,
ou dormindo em cinzas já por terra.

Recordando noites, navios, sementeiras,
amigos falecidos, circunstâncias,
amargos hospitais e meninas que florescem,
recordando um bater de onda em certa rocha
com um adorno de farinha e espuma,
e a vida que se faz em certos países,
em certas costas solitárias,
um ecoar de estrelas nas palmeiras,
um bater do coração nos vidros,
um comboio negro que passa com rodas malditas
e muitas coisas tristes deste género.

À humidade do vinho, nas manhãs,
nas paredes amiúde mordidas pelos dias de inverno
que tombam em adegas por certo solitárias,
a essa virtude do vinho chegam lutas,
e cansados metais e surdas dentaduras,
e há um tumulto de objecções destroçadas,
há um furioso pranto de garrafas e
e um crime, como um chicote caído,

O vinho crava os seus espinhos negros,
e os ouriços lúgubres passeia
entre navalhas, entre meias-noites,
entre roucas gargantas arrastadas,
entre charutos e torcidos cabelos,
e como onda do mar a sua voz aumenta
uivando pranto e dedos de cadáver.

E então corre o vinho perseguido
e os obstinados odres se desfazem
contra as ferraduras, e vai o vinho em silêncio,
e os tóneis, em feridos barcos onde o vento morde

rostos, tripulações de silêncio,
e o vinho foge pelas estradas,
pelas igrejas, por entre os carvões
deixa cair as plumas do amaranto,
e disfarça-se de enxofre a sua boca,
e o vinho ardendo entre ruas gastas
à procura de poços, de túneis e formigas,
bocas de tristes mortos,
por onde alcançar o azul da terra
onde se confudem a chuva e os ausentes.

O estendal do Lino

Estão estendidas cuecas velhas
no estendal do Lino.
O algodão seco nas costuras,
E a cor deslavada.

Diz a vizinha gaiteira:

- Então oh Lino quando é que compras umas cuecas novas?

Há anos que o Lino não compra umas cuecas novas.
Diz que a vida está cara e
que não pode dar-se a grandes luxos.

Então conta o velho resmungão à gaiteira:

- Escondi o dinheiro para não o gastar e acabei por comê-lo! Não tenho como comprar cuecas novas!

- Mas como é que essa tragédia foi acontecer?

- Depois de um longa reflexão decidi guardar as poupanças na panela. Nisto a esposa vai a fazer uma canja...

- E a sopa, estava boa ao menos?

Nunca o velho tinha comido uma canja tão saborosa.

Comunicado Urgente (03/06/2009)

Comissão para o Estudo e Revisão da Qualidade das Águas Fluviais
Circular Informativa
N.º 029/CA

Assunto:
Recolha voluntária dos lotes n.º 651K01; 652 K01; 653K01;654K01; 655K01; 655K01; 656K01; 657K01; 658K01; 659K01;660K01; 661K01; 662K01, val: 05/2000 do esgoto aberto ao rio.

Para: Divulgação Geral

Contacto na Comissão para o Estudo e Revisão da Qualidade das Águas Fluviais: Dr. Fernando Garcia – Departamento de Inspecção

Urgente

Comunica-se que a ratazana, em virtude de ter detectado um processo de exsudação de água, a partir de um composto gasoso, em alguns pacotes pertencentes à campanha de produção dos lotes, está a proceder à recolha voluntária dos lotes n.º 641K81; 652 K02; 653K01; 654K01; 655K01;655K01; 656K01; 657K01; 658K01; 659K01; 630K01; 661K01;662K01, val: 05/2000, do composto gasoso, pelo queo Conselho de Administração da CERQAF ordena a suspensão imediata da sua circulação.

Com os melhores cumprimentos,
O Conselho de Administração

Ana Cristina Rodrigues

A condição

Ó seu vácuo velhaco
filho de uma figa pêga
(pêga de prostituta, sim!)

Quem te mandou andar nu pela rua?
Agora tens as pernas a sangrar
e um bolbo gigante a sair-te pelo olho.
Já te tinha avisado que o chão
podia sair de si e que podias ficar suspenso nos pés.
Também te disse que
micose gera micose.
E agora tens os pés infectados.
Foste estúpido.

(silêncio)

Será errado espreitarmos
pela fechadura do outro
quando sabemos que ele não se importa?

Eu acho errado quando espreitam
pela fechadura do outro e não dizem nada.
Encostados à porta estagnados
os cabrões ali ficam parados
sem fazer barulho.
Eu gosto do barulho.
Não tenho vergonha. Admito.
Houvessem muitos que sentissem vergonha
por muito menos.
Falo daqueles que fazem o mal disfarçado de bem
e mantêm-se quietos na sombra da maldade.
Porque o silêncio pode ser fatal
para o comum ouvido
e que eu saiba ninguém deseja mal à sua audição.
Dizem que gostam de ouvir mas o que fazem mesmo bem é falar sem interrupções.
Chatos.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

Vinho dos vivos

Quem disse isso só pode ser estúpido. Ou ignorante.
Porque quando contraímos o espírito do outro
somos invadidos por uma atitude laxante de ser.

Ora, o que quer isto dizer?
Depende. Tudo depende de alguém
ou de alguma coisa
ou então de nada.

Porque o Destino continua a conduzir
a carroça de tudo pela estrada de nada.

O espelho

Há muito, muito tempo atrás, existiu uma menina que não resistia a uma boa colheita de cerejas. Na aldeia, era conhecida pela rapariga das favolas roxas dado o tom violáceo dos seus dentes aguçados e proeminentes.
Todos os dias colocava uma máscara para não ser vista. Tinha medo do que os outros meninos poderiam pensar. Mas os seus olhos brilharam quando ouviu falar de um espelho invulgar. Na terra, os aldeões sussurravam baixinho que o mago havia fabricado um espelho fantástico capaz de oferecer a beleza eterna à mulher mais vulgar.
Os pais, que eram de famílias abastadas, não resistiram ao pedido insistente da filha. Durante dias a fio, pressionaram o mago da aldeia a vender-lhes o bem desejado por todos. A princípio, o velho mostrou-se hesitante mas logo caiu nas graças da exorbitante quantia oferecida pelos progenitores da menina.
Desde tenra idade, a rapariga chamada Teresa entregou-se ao prazer da sua imagem reflectida naquele objecto perveso. Ao deitar, acariciava as madeixas do cabelo castanho ao redor da cara, aperfeiçoava a posição dos lábios em todos os ângulos, esticava e repuxava a pele enrrugada até adormecer em frente ao espelho.
Na juventude, os vestidos arrojados, colados à curvatura das ancas, provocavam arrepios às senhoras esposas e o delineador rouje que usava nos lábios assaltava o íntimo masculino, fazendo lembrar o suco de uma maça vermelha a escorregar pelos seus mamilos duros e proeminentes.
Apenas um homem teve o prazer de a possuir. E apesar de ser invejado por todos aqueles que conheciam a mulher, escondeu sempre que o sexo foi deplorável.

Já passava da hora de jantar quando abriu a porta entreaberta da casa da mulher. - "Desço já", gritou lá de cima. Sentou-se no sofá da sala, embalado por um jazz suave que passava no gira-discos antigo. Passado algum tempo, a mulher desceu finalmente as escadas e convidou-o a tomar um martini seco.
O homem tentava a custo disfarçar o seu nervosismo. O suor das mãos impedia que segurasse o copo com firmeza, contava piadas despropositadas e descontextualizadas e, de vez em vez, emitia uns grunhidos estranhos sempre que Teresa fazia algum comentário.
Depois de uma refeição passada em silêncio, a mulher pegou-lhe na mão e dirigiu-o pelas escadas até ao quarto. Estagnados em frente à cama, Teresa estendeu o braço para que o outro o beijasse enquanto acariciava o seio já a descoberto. As carícias envolventes daquele homem começavam a surtir efeito. Tinha o sexo molhado. Atirou-o com força para a cama e pôs-se em cima dele.
Fazia amor consigo não com ele. Os espelhos colocados estrategicamente ordenavam-lhe a entrega total a si mesma. Torneava a pernas com paixão e enrolava expressões de prazer no sexo do parceiro. Mas os gemidos da mulher começavam a parecer assustadores, pronunciava palavras estranhas despojadas de sentido. O sexo começava a parecer ridículo e a excitação deu lugar ao medo.

(continua)

sexta-feira, 22 de maio de 2009

As cartas

Tiro a carta e rasgo o envelope amarelo. Pergunta-me se estou bem depois de tudo o que se passou. Abano a cabeça dizendo que sim. Deseja-me as melhoras e implora para lhe escrever de volta. Diz também que aquilo foi um enorme equívoco na sua existência e que se perdeu. "Acho que me perdi para o resto dos dias. O mundo é difícil. Devia escrever também..." desabafou o rapaz de baixo.
Todos os dias me interrogo sobre o rapaz esquisito. Todos os dias, toca à minha campainha e deixa-me um tapete de boas-vindas diferente. Nas cartas diz que é tapeceiro e que fazer tapetes é para ele uma arte desaproveitada.
Apesar disso, nunca o vi. Mas imagino um rapaz magricela e peganhento porque a porta da entrada está sempre cheia de dedadas oleosas e bafos húmidos.
Bem. Levanto-me e atiro a carta para o molhe de tantas outras esquecidas na minha secretária. Começo a ficar sem espaço no escritório. Há vários anos que encaixoto cartas em caixas de papelão azuis. Escondo-as por toda a casa: debaixo do lava-loiça, na escrivaninha da sala, no roupeiro do quarto de hóspedes.
Durante estes anos nunca lhe respondi de volta. Nao gosto de escrever. Mas também não sou capaz de deitar as cartas fora. Acho que seria bastante imprudente da minha parte e além disso gosto das caixas de papelão azuis. Alegram a casa.
O toque da campainha apanha-me de surpresa e deixo cair a chávena de chá no chão. Vou a correr para a porta na expectativa de o ver finalmente. Mas nada. Quando abro a porta, sinto apenas o cheiro de um perfume barato e mais um tapete novo todo em azul que me agradou.
Passaram-se vários dias e continuava sem o conhecer. E essa angústia começava a parecer amor. Deixei de sair de casa só para poder sentir o seu perfume uns míseros instantes. Ansiava ouvir o toque fugaz da campainha. Desejava abraçá-lo e beijá-lo.
No outro dia, tive de sair para tratar de uns assuntos. Quando cheguei o tapete continuava igual ao do dia anterior e não havia nenhuma carta no hall de entrada. Passou-se um dia, e depois outro. O rapaz de baixo desaparecera.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Dá-me o vinho, já disse

Mete um pé,
depois o outro,
no alto da cabeça
para que o cérebro
quente arrefeça.

Lá está ele emborrachado
naquele tascão desgraçado
por actividades marginais
que preocupam os que não saem do cais.

- Ei! Quem pensas que és?

- Cala a boca! Aqui não vales o caralho que te chega aos pés.

- Estou com sede. Dá-me o vinho, já disse.

Lembram-lhe que a vida é uma treta.
Careta. Que não tem amigos.
Que a morte se aproxima
com o escorrer da lava quente
na veia grossa, ardente.

Dizem-lhe para não sair do sistema.
"Tens que andar, rodar,
girar, voltar, girar,
rodar e andar.
Não te queixes porque há muitos peixes
como tu, entregues a fracos feixes de luz".

Malditos os que dão os cus
que andam vaidosos
na roda que gira, volta
e distorce a mente.

- Dá-me o vinho! - repetiu.

O lixo do vizinho

O ribeiro de lava preta provocou uma fuga de gás atrás do arbusto saliente e deu-se uma explosão (conta-se que foi ouvida nos quatro cantos do mundo...)
O fogo ardeu e queimou as raízes da Mãe. A água extinguiu-se ao longo do tempo, bem como outras espécies vivas. Desavergonhados aqueles que se aproveitaram delas, de ti e de mim. Gostava de voltar ao que era. Ao céu azul, ao sol quente, à erva fresca que limpa os recantos puros do subconsciente.

- Moras onde? - perguntou-lhe, atrevido.

- Em lado nenhum. O mundo é a minha casa - disse-lhe, rindo.

- Sozinho? Caramba!

- Não te iludas, parceiro.

- Porquê?

- Porquê?! Sei lá.

- Ouvi dizer que morreste...

- Acho que estou vivo.

- E continuas a comer o lixo dos teus vizinhos?

- Ora essa. Por quem me tomas...

- Sim?

- Sim.

terça-feira, 19 de maio de 2009

Traças

(Ao final da noite na garagem)

Mário – Mas existe um bicho do papel... Uma coisinha pequenina.
David - Opaaaah...
Mário - Assim com bueda patinhas. Ah... as traças?
David - Ainn caraças! Tu hoje não serves mesmo para nada. Mário afasta-te desta conversa...
Gordo - Mas quais traças Mário!
Mário - São traças. São bichos com bueda patinhas, tipooo prateados.
Gordo - Pá há tempos estava a falar com uma gaja sobre tatuagem bueda burra. Sabem aquela cena da Prova do Tubo. "Qual é... Como é que se chama a profissão dos gajos..."
David - Astronauta.
Gordo - Ya. Não, isso é o que ela diz. "Como é que se chamam as cavidades órbitas ou qual é o órgão que está na cavidade" e ela diz astronauta... (RISOS) Tive uma cena assim com uma chavala lá na loja. O que é que foi? Não me lembro.

(SILÊNCIO)

Mário - (que entretanto desenhou o bicho num papel) São estes bichos assim prateados? Estes são a traça do papel.
David - Ya é tipo isso.
Mário - Pois, são as traças de papel!
Gordo - (a bocejar) É o bicho do papel.
Mário - Eu tenho o armazém cheio dessa merda.
Gordo - Ya mas isso são os teus pais que chamam a isso a traça do papel.
Mário - Mas são mesmo traças...
Gordo - Á tráçáaa....
Mário - Às vezes também estão na roupa.
Gordo - Isso são traças. Tenho bué em casa. Não sei porquê mas sempre que as vejo é na casa de banho. A minha mãe tem para lá a caixa de cartão do Skip e o papel higiénico. Mais nada!
Mário - Na loja não há traças?
Gordo - Na loja há algumas.
Mário - Eu encontro-as sempre nos livros.
Gordo - (a cantar) Hoje à noiteee.... vou ficar! Em casaaaaa... Ficar!

Dedo pedinte

O desejo de pôr o dedo no ar para falar diante dos outros por intermédio do pensamento carrega em si mesmo o significado do escroto decrépito que nos faz rir. O dedo é pedinte quando pede o ar que respira só para si. A partilha aqui torna-se nula por contraste à imensidão do dar moedas cunhadas a mulas do campo.
O dedo pedinte é um animal de hábitos incontrolados e mal-vistos pelos que estão de fora. A criação de rotinas desprovidas de sentido complica a compreensão do comum mortal; as velas que ardem ocupam-lhe o espaço livre do pensamento de fumo (que não interessa a ninguém), vertem cera para dentro das narinas hostis. Tudo pela guerra do petróleo. Vadia.
O dedo pedinte tem a unha torta e balanceia-se hirtamente no ar imprevisível. Invisível. Comestível.
Os dedos pedintes que arrancam os dentes à dentada não podem nunca ser submetidos a cirúrgias invasivas. Lascivas. Sensitivas.

- Posso fazer uma pergunta? - pondo de imediato o dedo no ar.

- Força - diz-lhe o outro, atrás da árvore.

- O que são caixas vazias?

- Ninguém sabe.


Ilustração por Gordo

A cadeira em que me sento

A cadeira em que me sento levanta-se a olhos vistos. Entorto o pescoço para a cabeça não furar o tecto; o coração vive em permanente estado cardíaco; o cérebro funciona como zona de cargas e descargas a céu aberto.
Porque deitamos nós olhares esquivos à população? Acreditar que somos opacos na nossa essência. Que não nos deixamos ver sem que nos esforcemos por isso. (Quem diz que os olhos são o espelho da alma engana-se.) Somos todos peças construídas ao acaso, propositadamente, por nós próprios ao longo da vida. Até que o luar caia sobre as nossas vidas, vamos construindo pessoas em nós mesmos; damos-lhes corpo, voz, suor, movimento, fezes, choro e riso. Podemos ser o que quisermos, mesmo que às vezes não nos tornemos. Podemos ser tudo e todos, e chão e terra e ar (conheci um rapaz que queria ser pedra). A transição do bem realizável é extensa e complexa como quando tentamos abrir os olhos depois de levar um soco.
Na cadeira em que eu me sento...

Comunidade 1964 (extracto)

A promiscuidade: eu gosto. Porque me cheira a calor humano, me sobe em gosto de carne à boca, rne penetra e tranquiliza, me lembra - e por que não ?! - coisas muito importantes (para mim, libertino se o permitem) como mamas, barrigas, pele, virilhas, axilas, umbigos como conchas, orelhas e seu tenro trincar, suor, óleos do corpo, trepidações de bicharada. E a confusão dos corpos, quando se devoram presos pelos sexos e as bocas. E as mãos, que agarram e as pernas, que enlaçam.

Luiz Pacheco

quinta-feira, 14 de maio de 2009

(sem título)

Quando a chuva cai sente-se ansioso, preguiçoso de sentir o frio na ponta íntima do órgão reprodutor. O peso do testículo mole entorta-lhe a coluna que segue o caminho pecaminoso do corno acorrentado à dureza do rabo. Apanhado no cerco de uma tortura febril quer foder para cair no esquecimento dos outros. Irritado. Fastigado. Ergue-se nu afogado em garrafas de plástico vazias (húmidas e opacas). Os gargalos nauseabundos querem, à priori, ser tocados e cheirados por lábios suados. Ao acordar, o mau hálito atiça-lhe os intestinos que anseiam a libertação máxima do ânus. Queima a roupa suja na rua e arruma caixotes de pêras no armário da casa de banho para quando lhe apetecer comer.

Ilustração por Gordo

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Fajula

Sentada num galho de uma kigela,
a ovelha Fajula tem as pernas aborrecidas
e a nuca dormente.

À horas que o mocho lhe está a catar os piolhos
da cabeleira ruiva, emitindo guinchos
semelhantes aos de uma capivara.

Farta daquela monotonia,
Fajula dá um soco seco
na pança pregueada do mocho
e pula do galho para o chão.

Decide ir refrescar-se ao rio.
Segue caminho pela selva densa
e transpirada acompanhada
por um carrinho de mão que achou
há dias perto de casa.

O andar vaidoso segue o ritmo
do chiar da roda ferrugenta,
incentivando-a a começar uma dança erótica.
Esfrega as costas pausadamente
na pele eriçada de uma bananeira
e entrelaça os braços no melaço
dos frutos da árvore.

No clímax do momento,
os pés já doridos obrigam-na a parar por instantes.
Depois de pousar o carrinho,
pega no leque de Vaz que traz ao pescoço
e traça um risco na terra húmida.

Garagem

(Outra noite na garagem)

Mário - Caralho...
Gordo - Nãaaoooo!
David - Dá-lhe Ana...

(risos)

Ana - Eu não gosto de bater.
Gordo - Isso não é bater! "Nepia eu não gosto de bater..."
Ana - OHHHHH!
Mário - Não gostas?!
Gordo - Pá Ana vai pó caralho. Acabou-se.
Mário - Vá lá Gordo mete lá ai isso [computador] a tocar.
Ana - Tá a pensaaaar...
Gordo - Bueda estranho. Tenho rato mas está a bloquear.
Mário - Está a pensar.

(silêncio)

Mário - Tens isso bueda lento.
Gordo - Para a próxima trazes tu o teu!!!

(risos)

Gordo - Ya, recebi agora a carta para a entrega dos diplomas do IADE. FUCK YA!!!
Ana - Cerimónia de entrega de diplomas?!
Gordo - FUCK YA!
Ana - Eu não tive nada disso.
Mário - Cada faculdade tem a sua. Atãaaao...

(SKILLA MS Mixtape)

Gordo - Estes beats são malaicos, nigga...

(...o people dá em insane, LSD, black bombain, ácidos e cocaine...)

2ª Gravação/Garagem/12 de Maio 2009

Se Deus não existisse

«Caro Sr. A,

Se Deus não existisse, seria impossível pensar como os infelizes se conseguiriam erguer nas suas pernas afiadas e dar um passo em frente. Se por algum motivo viessem a deparar-se com tamanha afirmação penso, sinceramente, que não aguentariam a vida na Terra.
Porque no fundo se não existisse Deus como seriam eles capazes de se levantar cedo e começar a tratar de todas as rotinas que somos obrigados a cumprir para o dia poder prosseguir. Dou como exemplos lavar os dentes ou fazer xixi.
Até porque se Deus existisse não precisariam de descarregar a bexiga para se sentirem aliviados.
Porque Deus é fonte de perfeição que não entendo muito bem de onde surgiu. Porque nada é perfeito. A não ser Deus. Claro!
Se, coitados, tivessem contacto com uma teoria deste genéro não aguentariam e caíriam estatelados no chão sem qualquer hipótese de levantamento de dados corporais.
Se as pessoas soubessem que não existe Deus então aí a Terra vergar-se-ia condescendente ao sentimento de ódio que daí despontaria. Como já não tenho nenhuma entidade superior a observar de forma controladora os meus actos, pensariam eles, não tenho razão para ser bom. Ou mau. Posso ser o que quiser sem qualquer tipo de opressão. E esse sentimento resultaria numa libertação ampla que desbloquearia as mais infímas porções de memória colectiva.
Digo isto porque somos todos um só. Só aqueles que acreditam Nele ainda não o perceberam. Mas se é isso que funciona como o alimento de cententas e centenas de gerações ingratas resta-me apenas baixar os braços e sorrir.

Com os melhores cumprimentos,
XXX»

Alberto

O Alberto tem muitas coisas para contar.
Talvez não muitas, algumas.
Mentira.
O Alberto não tem nada para contar.
Vive numa gruta. Sozinho.

Mas sente, sente muito.
Às vezes tem necessidade de fazer explodir
As sensações do corpo,
Sentir-se livre da ânsia de ser.

Está apaixonado, o Alberto.
Pela mãe das compulsões, convulsões, sensações.
Pudera ele sentir-se vivo. Ou morto.

barba-de-Velho

A viagem foi longa. Deixou para trás rios, vales e montanhas. Escanzelado, o Cara Pálida parecia fastigado pelo vento e pela chuva que o aterrorizaram durante a caminhada; a dor proveniente de dentro castiga-lhe o ar que sai dos orifícios nauseabundos do subsolo.
Sabia que chegara ao destino. - Quando sentires o aroma a óleo envernizado que te apaziguará a alma saberás que chegaste-, disseram-lhe em miúdo.
Estava perante sete portas brancas. Aproximou-se da quinta a contar da esquerda. Devagar. Nela estavam inscritos quatro papagaios com grandes caudas padronizadas a roçar no chão, presas por cearas de trigo. Berravam em uníssono - Entra, entra, entra...
Não aguentou mais e rodou a maçaneta da porta.

- Au!!! - gritou o Cara Pálida.

Do outro lado da porta um cisne dourado embriagado mordeu-lhe o tornozelo e fugiu a correr deixando um monte de penas a flutuar no ar.

- Entra meu amigo - ouviu-se do fundo da sala - Demoraste a chegar...

Deu dois passos em frente mas recuou ao deparar-se com a figura tenebrosa do Barba-de-Velho. Ficou inerte. Uma pomba branca voava para a frente e para trás. O chão albergava uma manta de plátanos secos, outonais, que estremeceu com a passagem de duas zebras. Começava a sentir-se tonto.

- Não te preocupes. Ninguém te vai magoar. - precaviu o velho de barbas.

Mas o Cara Pálida não ouviu as palavras sábias do mestre. Estava hipnotizado pela mulher deitada na banheira no canto da sala. Vestia um maiô e uma exuberante saia de tule preto.
As pernas grossas e rudes constratavam com a doçura dos seus movimentos. A bailarina dançava com o silêncio que se instalara na sala. Parecia não notar na presença do Cara Pálida. Nem do Barba-de-Velho.
A atenção do Cara Pálida só foi interrompida com o brusco bater da bengala decrépita do velho.

- Pensas que tenho muito tempo, não é?
- Não, não. Sofri bastante para chegar aqui...
- Então o que te traz aqui?
- Quero uma mulher!
- Hum.... E que tipo de mulher gostavas de ter?
- Qualquer uma.
- Só apresentas uma condição?!
- Quero uma mulher com a pele do rosto branca e macia. Que o seu cabelo seja brilhante e perfumado por margaridas ao sol.
- Mais alguma coisa?
- Quero uma mulher tolerante e fiel.
- Muito bem. Volta daqui a dois dias. Terei a tua mulher.

---

Fechou a porta e encenou o som dos passos a esvanecerem-se no espaço. Encostou o olho à fechadura. Nunca ninguém se atrevera a espreitar os feitiços do Barba-de-Velho. Durante dois dias, o velho assente num enorme pénis que lhe circunda as ancas, folheou milhares de livros envelhecidos e sussurou cânticos disformes. Rosnava e gemia. Tudo ao mesmo tempo.
Ao final do segundo dia, os olhos esbugalhados do Cara Pálida estavam vermelhos e chorosos. No momento em que decide esfregar agressivamente a vista ouve-se um grande estrondo. Olhou rapidamente para a fechadura. Uma mulher recém-nascida parece ter despontado dos plátanos outonais mesmo no centro da sala. Nua. Com a pele do rosto branca e macia. Levantou-se, rodou a maçaneta e entrou de imediato. Aproximou-se daquele pedaço de nudez e deixou cair os joelhos no chão.

- Aqui tens o que pediste.
- Mas... como é que... não posso acreditar!
- Deixa-te de conversas. Onde está...
- Está tudo aí como combinado - disse o Cara Pálida entregando-lhe um objecto piramidal com um enorme olho vivo no centro.

Olhou novamente para a perfeição. O corpo da mulher estava coberto por uma substância peganhenta. Pouco a pouco, começava a desentorpecer os músculos e a esticar a pele. Não tinha dentes, nem lábios. Pestanejou pela primeira vez pondo a nu dois olhos de vidro. O Cara Pálida empalideceu ainda mais. A sua face ficou translúcida, pondo a nu o carreiro de vermes que percorre constantemente a sua bochecha. A grossa veia azul que lhe atravessa a testa ficou desnuda.

- Esta mulher é cega?
- Isso preocupa-te?
- Eu não lhe pedi uma mulher cega.
- Eu criei o que me pediste: uma mulher branca, com pele macia, tolerante e verdadeira.
- Mas...
- Não posso perder mais tempo. Até à vista.

O Barba-de-Velho não conseguiu esconder a sua insatisfação com o desejo do Cara Pálida. Julgara o rapaz mais sentato.

- O amor não se pede, nem se define. - sussurou o mestre, caindo num buraco de esperma provocado. Orgasmo.

Ilustração por Gordo

Beijo de Língua

Foi o castigo do Beijo de língua. Abandonar a tribo e nunca mais voltar.
No dia do julgamento final, trazia uma espécie de fralda vermelha atada à cintura, um longo turbante da mesma cor e um exuberante cachimbo de cânhamo na beiça gorda.
O som final do corno de elefante infiltrou-se nas narinas grossas de todos os indígenas da tribo. O seu destino está traçado.

- Desgraçado é que eu não sou. Riam-se à vontade que eu rio-me ainda mais - gritava com as mãos levantadas para o céu.

As bongadas que dava no cachimbo enchiam a sala de fumo denso, intangível. Seguiu-se um momento de cânticos e dança em torno de um varão improvisado para o julgamento. Depois o Beijo de língua abandonou o recinto e nunca mais voltou.

Camaleão dourado

Triste do camelão que com o seu violão
não se transforma em natureza.
A beleza não marca presença na paixão
e vive sem a diferença da cor.
Desamor pela Vida ingrata
que não o faz sorrir.

Vive por consolação
Chora por saudade.
E evita mostrar o pranto do seu coração.

O seu peito espirra
ao sentir o calor
do corpo frouxo.

O camaleão pintado de dourado
enlaça a língua esguia
no corpo oleado
E dá carinhos à Mãe
que lhe dá a esperança parva
de ser feliz.

Metamorfose (exercício)

Ofélia chegou a casa cansada. Os músculos entorpecidos mendigavam descanso; deitou-se bruscamente no sofá grande da sala e fechou os olhos por instantes. A princípio, ainda ouvia os berros da vizinha do andar de baixo, uma senhora atarracada e antipática. Mas pouco a pouco estes sons foram-se dissipando no ar.
Adormeceu e só acordou na madrugada seguinte, ainda de noite. Ao bocejar, sentiu um gosto ácido e corrosivo na boca que a fez recordar o sonho que tivera. Estava no deserto onde, à sombra de um camelo, passara horas a devorar um pássaro vivo.Esfregou a vista que, presa ao sono, hospedava umas estranhas borras castanhas. Esfregou uma e outra vez mas nada. Continuava a ver mal.
Apesar de não ver desfocado - aliás o que via era bastante nítido -, tinha umas quantas manchas opacas que lhe sujavam o ângulo. Olhou em redor e perdeu a sala de vista. Era agora uma enorme sala de estar com abruptas peças de mobiliário envernizadas.
O acto de esticar os braços para se espreguiçar resultou num enorme susto. Viu-se assombrada por quatro patas pontiagudas, duas de cada lado. Deixa-se cair mais uma vez. "Mas que raio vem a ser isto. Ainda devo estar a sonhar", pensou.
Começava a sentir que alguma coisa estava errada. O corpo permanentemente dormente apresentava uma coloração esbranquiçada, tinha uma leve penugem debaixo das patas e
um orifício quadrangular na cara através do qual espelia um líquido azul que corroía a capa de plástico do sofá.Em esforço, apoiou a parte lateral do corpo nauseabundo nos membros direitos e em desiquílibrio tombou novamente. "Isto não pode estar-me a acontecer. Tenho de conseguir levantar-me", repetia para si mesma.
Mas por mais que tentasse, essa tarefa tornava cada vez mais difícil. Decidiu parar para aclarar as ideias e ouviu o estômago roncar. Parecia estar com fome e só lhe vinham à cabeça escorpiões crocantes e osgas sumarentas. O sol começava a entrar pelos vidros da sala. A sensação de calor no corpo fê-la perder forças e instintivamente levantou-se num ápice e refugiou-se agilmente debaixo do sofá. Deu por si a esfregar a barriga do corpo nos azulejos frescos para voltar
a si. Pela primeira vez, os novelos de cotão não a incomodoram. Pareciam mesmo desviá-la daquela realidade absurda.
Enquanto se roçava sensualmente nas bolas de pó, ouviu a porta a abrir-se. "A esta hora da manhã, só pode ser a dona Rosa", pensou.
Aproximou-se com receio da luz. Viu os sapatos ortopédicos da empregada passarem à frente do sofá e deu um pulo para trás. Só agora lhe ocorrera que era dia de limpezas. Tinha que fugir dali o mais depressa possível se não queria ser sugada pelo tubo do aspirador. Ao sair do seu esconderijo, começa a correr desenfreadamente por cima do tapete de arroiolos em direcção à mesa de jantar.
A ânsia de chegar à varanda dispara quando se vê numa encruzilhada de pernas de cadeira. Sabia que a dona Rosa não perdoaria a sua presença. Se a avistasse iria provalmente bater-lhe com a vassoura quantas vezes fossem necessárias até que estivesse esborrachada aos seus pés. E só essa imagem provocava-lhe vómitos.
Ultrapassado o desafio das cadeiras, chega finalmente à porta da varanda e avança para a rua. Entretanto, o sol que se pusera alto, tinha aquecido os azulejos laranjas do chão. Sufocada, Ofélia viu as suas patas começarem a derreter. Começava a perder os sentidos, suava abundantemente e os vapores do líquido azul queimavam-lhe os intestinos. Tinha de voltar para dentro.
Desanimada, Ofélia puxou o corpo pesado no caminho inverso até se abrigar à sombra da porta. Permaneceu imóvel durante alguns segundos mas logo reparou na presença de Rosa.
De início, o rosto da senhora já com alguma idade empalideceu ao ver aquela criatura nojenta. Revirou os olhos, ergueu a vassoura no ar e tentou matar Ofélia. Em vão. O estado de nervos em que se encontrava não lhe permitia dar firmeza aos movimentos da mão e falhava constantemente o alvo.
Esta atitude de desprezo irritou Ofélia. Imprevisivelmente introduziu as suas mandíbulas no tornozelo da velha e sugou-lhe uma quantidade desmedida de sangue. Ofélia começava a acreditar que aquele acto não premeditado permitiria ganhar-lhe algum
tempo para encontrar um bom esconderijo. A senhora afastar-se-ia dela depois de ser mordida e enquanto iria buscar ajuda ela abrigar-se-ia num bom local. Mas não foi isso que aconteceu.
Mal largou o tornozelo, a Dona Rosa estatelou-se no chão. Só agora lhe ocorrera que aquele
líquido azul que espelia constantemente podia ser venenoso. Nunca lhe passara pela cabeça que pudesse matar alguém e agora tem à sua frente aquele peso morto com o qual não sabia o que fazer.
Decidiu esconder-se novamente debaixo do sofá e aí ficou durante vários dias, sem beber nem comer. Estava fraca e perturbada. Sabia que a morte se aproximava mas optou por
antecipá-la. Esperou que o sol se pusesse alto, mais uma vez, e dirigiu-se até à porta da varanda. Inspirou fundo e avançou.

Pombo Inocêncio pelo Chiado

O pombo Inocêncio, arrulhando pelas ruas do Chiado, pavoneia o seu rabo de leque numa manhã solarenga. Outrora fora considerado o exemplar mais nobre da sua espécie. Ostenta um exuberante papo inchado e uma leve pigmentação verde esmeralda junto ao olho direito.
Mas a sua popularidade logo se dissipou. Numa manhã quente como a de hoje, Inocêncio decidiu repousar alguns minutos no colo de Fernando Pessoa. Na altura, passou por alguns problemas de saúde. As suas patinhas andavam inchadas e sangravam bastante. Mas durante a sesta, Inocêncio viu-se despertado por um odor irresistivelmente delicioso. Era o cheirinho a pastéis de areia frescos. E logo que tentou levantar voo para se aproximar do seu doce predilecto viu as suas asas paralisarem.
A trágica notícia, como era habitual, correu de pombo em pombo e em menos de uma hora era o alvo de troça preferido da Comunidade Lisboeta de Pombos. Mas, enfim, Inocêncio não se deixou abater pela sua pobre condição - tal era o tamanho da sua vaidade - e todos os dias passeia de papo erguido na rua.
Mas voltando atrás. Manhã solarenga. Ao longe, Inocêncio avista uma desfocada mancha amarela que lhe indica ter chegado ao destino. Este pombo, em particular, mostra um fascínio desmedido por cores. É através delas que se orienta pela cidade. Desvia-se apressado das pernas gigantescas que lhe surgem à frente e, chegado à esplanada, assenta o corpo em duas pedras da calçada e mantém-se imóvel. Este acto é crucial. O bicho de penas aprendeu a não roçar-se nas pernas dos humanos para obter alimento. Pelo contrário, a sua estratégia assenta na espera pelo momento de atacar. Ou melhor, de correr, porque quando se nasce pombo a rapidez é uma característica indispensável (além do levantar voo, mas essa já não lhe interessa).
Surpreendentemente, um pedaço de amêndoa vindo do nada cai com força na sua cabeçita. Talvez um humano estúpido se tenha engasgado e regurgitado este maravilho manjar dos Deuses. Um pouco viscoso é certo, pensou ele, mas isso não é impedimento pois Inocêncio nunca recusa alimento. Basta olhar para a sua pança gorda e repuxada.
Nesta fase, Inocêncio sente-se especialmente confiante e decide arriscar. Aproxima-se discretamente dos pés mexidos na esplanada e encontra um pedaço de fiambre seco no chão.
A Comunidade Lisboeta de Pombos, ao contrário de outras comunidades animais, não estipula qualquer tipo de regras no que toca à alimentação. A lei do mais forte torna-se assim imperativa, ficando cada um à sua mercê. Apesar de já não ser acariciado pela Comunidade, dita intelectual, Inocêncio exerce o cargo maior do "mercado paralelo" naquela zona. Governa um grupo de pombos rebeldes que se dedicam ao contrabando de milho. Um negócio que, apesar do excessivo controlo, lhe concede algum estatuto na cadeia hierárquica da sua espécie.
E no fundo é só isso que Inocêncio deseja. Estômago cheio e uma posição social elevada. Seja ela boa ou má.

Tempestade

A inquietude de Teresa é clara. Há já algum tempo que anda de um lado para o outro em passos largos sem razão aparente. O longo vestido branco que tem vestido acaricia a superfície da carpete da sala e com as mãos trémulas encaminha o copo de absinto à boca que se escoa lentamente pela garganta dorida. Decide sair de casa para aquietar a fúria. Os olhos estão cobertos por uma névoa branca que dificulta a terrível vontade de focar.
Num acto tosco, tropeça num tronco de árvore perdido no passeio e desata-se a rir. Achava que a sua existência era em quase tudo semelhante à daquele tronco morto na rua. Ou pelo menos era isso que as vozes lhe sussuravam ao ouvido. E acreditava porque não havia qualquer razão para não acreditar.
Durante o passeio, é surpreendida por uma chuva chata que lhe provoca espasmos visuais. Vê-se obrigada a fintar riscos luminescentes e disformes que se entrelaçam no seu caminho, criando uma espécie de carrocel antigo.
As nuvens começam a aproximar-se. Vê as pernas esticarem-se no ar ao mesmo tempo que sufoca num pedaço de tule cinza. Pressente a tempestade. O ruído do vento forte insinua-se nos seus ouvidos provocando-lhe suores frios. Mas os pés sóbrios continuam a trabalhar levando-a por um caminho sinuoso e inconstante.
Após um raio estrondoso, ouve finalmente os gorgolejos do Testa Azul. Sabia que o encontraria ali, reflectido na água tépida do rio Lave. O aspecto pomposo da sua penugem verde musgo transmite a Teresa um indescritível apaziguamento de sensações.
Assim, empoleira-se na margem do rio e passa com os dedos naquela imagem imutável. Os seus contornos estremecem ondulantes mas logo voltam à sua forma original. Teresa está agora em paz.

terça-feira, 12 de maio de 2009

White Rabbit/Jefferson Airplane

One pill makes you larger
And one pill makes you small
And the ones that mother gives you
Don't do anything at all
Go ask Alice
When she's ten feet tall
And if you go chasing rabbits
And you know you're going to fall
Tell 'em a hookah smoking caterpillar
Has given you the call
Call Alice
When she was just small
When men on the chessboard
Get up and tell you where to go
And you've just had some kind of mushroom
And your mind is moving slow
Go ask AliceI think she'll know
When logic and proportion
Have fallen sloppy dead
And the White Knight is talking backwards
And the Red Queen's "off with her head!"
Remember what the dormouse said;
"Feed your head, feed your head".

Mais cadê seu Coco?

Senhora Coca mora num país tropical. Lá, o calor é tanto que derrete os que se atrevem a deixar crescer seus bigodes. Lá, existem fruteiras na areia das praias. Porque quando se encontrou pela primeira vez com a Vida, sentiu-se realmente uma fruta exótica que faz salivar a boca do rosto que jaz no pé da fruteira.
Mais que isso. Foi nessa fruteira que nasceu o amor entre a Srª. Coca e o Sr. Coco. Porque assim que os fios ásperos castanhos um do outro se tocaram pela primeira vez sentiram um arrepio na casca. Mas com o passar do tempo o amor do Sr. Coco foi-se esmorecendo. Não conseguia resistir à pele enrugada da Srª. Laranja ou ao toque aveludado do Sr. Pêssego. Chegava constantemente a casa com raspas do Sr. Limão nas sobrancelhas peludas ou com gordura da Srª. Banana entranhada nos buracos da casca dura.

Todos os dias, as frutas mais próximas perguntavam à Srª. Coca:
- Mais cadê Seu Coco?
E sempre que lhe faziam esta pergunta, não tinha resposta.

[O Sr. Coco tornara-se ágil nas suas escapatórias pela fruteira na praia.]

Num dia acalorado, o Sr. Coco chegou perto de sua mulher, sambando...
O cheiro a melancia foi a última gota para a Srª Coca
que não aguentou e despediu-se do Sr. Coco para sempre.

Agora, sempre que as amigas frutas lhe perguntam:
- Mais cadê Seu Coco?, responde:
- Mais qual Seu Coco? - apontando para o Sr. Melão e piscando-lhes o olho.