quarta-feira, 13 de maio de 2009

Pombo Inocêncio pelo Chiado

O pombo Inocêncio, arrulhando pelas ruas do Chiado, pavoneia o seu rabo de leque numa manhã solarenga. Outrora fora considerado o exemplar mais nobre da sua espécie. Ostenta um exuberante papo inchado e uma leve pigmentação verde esmeralda junto ao olho direito.
Mas a sua popularidade logo se dissipou. Numa manhã quente como a de hoje, Inocêncio decidiu repousar alguns minutos no colo de Fernando Pessoa. Na altura, passou por alguns problemas de saúde. As suas patinhas andavam inchadas e sangravam bastante. Mas durante a sesta, Inocêncio viu-se despertado por um odor irresistivelmente delicioso. Era o cheirinho a pastéis de areia frescos. E logo que tentou levantar voo para se aproximar do seu doce predilecto viu as suas asas paralisarem.
A trágica notícia, como era habitual, correu de pombo em pombo e em menos de uma hora era o alvo de troça preferido da Comunidade Lisboeta de Pombos. Mas, enfim, Inocêncio não se deixou abater pela sua pobre condição - tal era o tamanho da sua vaidade - e todos os dias passeia de papo erguido na rua.
Mas voltando atrás. Manhã solarenga. Ao longe, Inocêncio avista uma desfocada mancha amarela que lhe indica ter chegado ao destino. Este pombo, em particular, mostra um fascínio desmedido por cores. É através delas que se orienta pela cidade. Desvia-se apressado das pernas gigantescas que lhe surgem à frente e, chegado à esplanada, assenta o corpo em duas pedras da calçada e mantém-se imóvel. Este acto é crucial. O bicho de penas aprendeu a não roçar-se nas pernas dos humanos para obter alimento. Pelo contrário, a sua estratégia assenta na espera pelo momento de atacar. Ou melhor, de correr, porque quando se nasce pombo a rapidez é uma característica indispensável (além do levantar voo, mas essa já não lhe interessa).
Surpreendentemente, um pedaço de amêndoa vindo do nada cai com força na sua cabeçita. Talvez um humano estúpido se tenha engasgado e regurgitado este maravilho manjar dos Deuses. Um pouco viscoso é certo, pensou ele, mas isso não é impedimento pois Inocêncio nunca recusa alimento. Basta olhar para a sua pança gorda e repuxada.
Nesta fase, Inocêncio sente-se especialmente confiante e decide arriscar. Aproxima-se discretamente dos pés mexidos na esplanada e encontra um pedaço de fiambre seco no chão.
A Comunidade Lisboeta de Pombos, ao contrário de outras comunidades animais, não estipula qualquer tipo de regras no que toca à alimentação. A lei do mais forte torna-se assim imperativa, ficando cada um à sua mercê. Apesar de já não ser acariciado pela Comunidade, dita intelectual, Inocêncio exerce o cargo maior do "mercado paralelo" naquela zona. Governa um grupo de pombos rebeldes que se dedicam ao contrabando de milho. Um negócio que, apesar do excessivo controlo, lhe concede algum estatuto na cadeia hierárquica da sua espécie.
E no fundo é só isso que Inocêncio deseja. Estômago cheio e uma posição social elevada. Seja ela boa ou má.

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