sexta-feira, 22 de maio de 2009

As cartas

Tiro a carta e rasgo o envelope amarelo. Pergunta-me se estou bem depois de tudo o que se passou. Abano a cabeça dizendo que sim. Deseja-me as melhoras e implora para lhe escrever de volta. Diz também que aquilo foi um enorme equívoco na sua existência e que se perdeu. "Acho que me perdi para o resto dos dias. O mundo é difícil. Devia escrever também..." desabafou o rapaz de baixo.
Todos os dias me interrogo sobre o rapaz esquisito. Todos os dias, toca à minha campainha e deixa-me um tapete de boas-vindas diferente. Nas cartas diz que é tapeceiro e que fazer tapetes é para ele uma arte desaproveitada.
Apesar disso, nunca o vi. Mas imagino um rapaz magricela e peganhento porque a porta da entrada está sempre cheia de dedadas oleosas e bafos húmidos.
Bem. Levanto-me e atiro a carta para o molhe de tantas outras esquecidas na minha secretária. Começo a ficar sem espaço no escritório. Há vários anos que encaixoto cartas em caixas de papelão azuis. Escondo-as por toda a casa: debaixo do lava-loiça, na escrivaninha da sala, no roupeiro do quarto de hóspedes.
Durante estes anos nunca lhe respondi de volta. Nao gosto de escrever. Mas também não sou capaz de deitar as cartas fora. Acho que seria bastante imprudente da minha parte e além disso gosto das caixas de papelão azuis. Alegram a casa.
O toque da campainha apanha-me de surpresa e deixo cair a chávena de chá no chão. Vou a correr para a porta na expectativa de o ver finalmente. Mas nada. Quando abro a porta, sinto apenas o cheiro de um perfume barato e mais um tapete novo todo em azul que me agradou.
Passaram-se vários dias e continuava sem o conhecer. E essa angústia começava a parecer amor. Deixei de sair de casa só para poder sentir o seu perfume uns míseros instantes. Ansiava ouvir o toque fugaz da campainha. Desejava abraçá-lo e beijá-lo.
No outro dia, tive de sair para tratar de uns assuntos. Quando cheguei o tapete continuava igual ao do dia anterior e não havia nenhuma carta no hall de entrada. Passou-se um dia, e depois outro. O rapaz de baixo desaparecera.

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