sexta-feira, 29 de maio de 2009

Vinho dos vivos

Quem disse isso só pode ser estúpido. Ou ignorante.
Porque quando contraímos o espírito do outro
somos invadidos por uma atitude laxante de ser.

Ora, o que quer isto dizer?
Depende. Tudo depende de alguém
ou de alguma coisa
ou então de nada.

Porque o Destino continua a conduzir
a carroça de tudo pela estrada de nada.

O espelho

Há muito, muito tempo atrás, existiu uma menina que não resistia a uma boa colheita de cerejas. Na aldeia, era conhecida pela rapariga das favolas roxas dado o tom violáceo dos seus dentes aguçados e proeminentes.
Todos os dias colocava uma máscara para não ser vista. Tinha medo do que os outros meninos poderiam pensar. Mas os seus olhos brilharam quando ouviu falar de um espelho invulgar. Na terra, os aldeões sussurravam baixinho que o mago havia fabricado um espelho fantástico capaz de oferecer a beleza eterna à mulher mais vulgar.
Os pais, que eram de famílias abastadas, não resistiram ao pedido insistente da filha. Durante dias a fio, pressionaram o mago da aldeia a vender-lhes o bem desejado por todos. A princípio, o velho mostrou-se hesitante mas logo caiu nas graças da exorbitante quantia oferecida pelos progenitores da menina.
Desde tenra idade, a rapariga chamada Teresa entregou-se ao prazer da sua imagem reflectida naquele objecto perveso. Ao deitar, acariciava as madeixas do cabelo castanho ao redor da cara, aperfeiçoava a posição dos lábios em todos os ângulos, esticava e repuxava a pele enrrugada até adormecer em frente ao espelho.
Na juventude, os vestidos arrojados, colados à curvatura das ancas, provocavam arrepios às senhoras esposas e o delineador rouje que usava nos lábios assaltava o íntimo masculino, fazendo lembrar o suco de uma maça vermelha a escorregar pelos seus mamilos duros e proeminentes.
Apenas um homem teve o prazer de a possuir. E apesar de ser invejado por todos aqueles que conheciam a mulher, escondeu sempre que o sexo foi deplorável.

Já passava da hora de jantar quando abriu a porta entreaberta da casa da mulher. - "Desço já", gritou lá de cima. Sentou-se no sofá da sala, embalado por um jazz suave que passava no gira-discos antigo. Passado algum tempo, a mulher desceu finalmente as escadas e convidou-o a tomar um martini seco.
O homem tentava a custo disfarçar o seu nervosismo. O suor das mãos impedia que segurasse o copo com firmeza, contava piadas despropositadas e descontextualizadas e, de vez em vez, emitia uns grunhidos estranhos sempre que Teresa fazia algum comentário.
Depois de uma refeição passada em silêncio, a mulher pegou-lhe na mão e dirigiu-o pelas escadas até ao quarto. Estagnados em frente à cama, Teresa estendeu o braço para que o outro o beijasse enquanto acariciava o seio já a descoberto. As carícias envolventes daquele homem começavam a surtir efeito. Tinha o sexo molhado. Atirou-o com força para a cama e pôs-se em cima dele.
Fazia amor consigo não com ele. Os espelhos colocados estrategicamente ordenavam-lhe a entrega total a si mesma. Torneava a pernas com paixão e enrolava expressões de prazer no sexo do parceiro. Mas os gemidos da mulher começavam a parecer assustadores, pronunciava palavras estranhas despojadas de sentido. O sexo começava a parecer ridículo e a excitação deu lugar ao medo.

(continua)

sexta-feira, 22 de maio de 2009

As cartas

Tiro a carta e rasgo o envelope amarelo. Pergunta-me se estou bem depois de tudo o que se passou. Abano a cabeça dizendo que sim. Deseja-me as melhoras e implora para lhe escrever de volta. Diz também que aquilo foi um enorme equívoco na sua existência e que se perdeu. "Acho que me perdi para o resto dos dias. O mundo é difícil. Devia escrever também..." desabafou o rapaz de baixo.
Todos os dias me interrogo sobre o rapaz esquisito. Todos os dias, toca à minha campainha e deixa-me um tapete de boas-vindas diferente. Nas cartas diz que é tapeceiro e que fazer tapetes é para ele uma arte desaproveitada.
Apesar disso, nunca o vi. Mas imagino um rapaz magricela e peganhento porque a porta da entrada está sempre cheia de dedadas oleosas e bafos húmidos.
Bem. Levanto-me e atiro a carta para o molhe de tantas outras esquecidas na minha secretária. Começo a ficar sem espaço no escritório. Há vários anos que encaixoto cartas em caixas de papelão azuis. Escondo-as por toda a casa: debaixo do lava-loiça, na escrivaninha da sala, no roupeiro do quarto de hóspedes.
Durante estes anos nunca lhe respondi de volta. Nao gosto de escrever. Mas também não sou capaz de deitar as cartas fora. Acho que seria bastante imprudente da minha parte e além disso gosto das caixas de papelão azuis. Alegram a casa.
O toque da campainha apanha-me de surpresa e deixo cair a chávena de chá no chão. Vou a correr para a porta na expectativa de o ver finalmente. Mas nada. Quando abro a porta, sinto apenas o cheiro de um perfume barato e mais um tapete novo todo em azul que me agradou.
Passaram-se vários dias e continuava sem o conhecer. E essa angústia começava a parecer amor. Deixei de sair de casa só para poder sentir o seu perfume uns míseros instantes. Ansiava ouvir o toque fugaz da campainha. Desejava abraçá-lo e beijá-lo.
No outro dia, tive de sair para tratar de uns assuntos. Quando cheguei o tapete continuava igual ao do dia anterior e não havia nenhuma carta no hall de entrada. Passou-se um dia, e depois outro. O rapaz de baixo desaparecera.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Dá-me o vinho, já disse

Mete um pé,
depois o outro,
no alto da cabeça
para que o cérebro
quente arrefeça.

Lá está ele emborrachado
naquele tascão desgraçado
por actividades marginais
que preocupam os que não saem do cais.

- Ei! Quem pensas que és?

- Cala a boca! Aqui não vales o caralho que te chega aos pés.

- Estou com sede. Dá-me o vinho, já disse.

Lembram-lhe que a vida é uma treta.
Careta. Que não tem amigos.
Que a morte se aproxima
com o escorrer da lava quente
na veia grossa, ardente.

Dizem-lhe para não sair do sistema.
"Tens que andar, rodar,
girar, voltar, girar,
rodar e andar.
Não te queixes porque há muitos peixes
como tu, entregues a fracos feixes de luz".

Malditos os que dão os cus
que andam vaidosos
na roda que gira, volta
e distorce a mente.

- Dá-me o vinho! - repetiu.

O lixo do vizinho

O ribeiro de lava preta provocou uma fuga de gás atrás do arbusto saliente e deu-se uma explosão (conta-se que foi ouvida nos quatro cantos do mundo...)
O fogo ardeu e queimou as raízes da Mãe. A água extinguiu-se ao longo do tempo, bem como outras espécies vivas. Desavergonhados aqueles que se aproveitaram delas, de ti e de mim. Gostava de voltar ao que era. Ao céu azul, ao sol quente, à erva fresca que limpa os recantos puros do subconsciente.

- Moras onde? - perguntou-lhe, atrevido.

- Em lado nenhum. O mundo é a minha casa - disse-lhe, rindo.

- Sozinho? Caramba!

- Não te iludas, parceiro.

- Porquê?

- Porquê?! Sei lá.

- Ouvi dizer que morreste...

- Acho que estou vivo.

- E continuas a comer o lixo dos teus vizinhos?

- Ora essa. Por quem me tomas...

- Sim?

- Sim.

terça-feira, 19 de maio de 2009

Traças

(Ao final da noite na garagem)

Mário – Mas existe um bicho do papel... Uma coisinha pequenina.
David - Opaaaah...
Mário - Assim com bueda patinhas. Ah... as traças?
David - Ainn caraças! Tu hoje não serves mesmo para nada. Mário afasta-te desta conversa...
Gordo - Mas quais traças Mário!
Mário - São traças. São bichos com bueda patinhas, tipooo prateados.
Gordo - Pá há tempos estava a falar com uma gaja sobre tatuagem bueda burra. Sabem aquela cena da Prova do Tubo. "Qual é... Como é que se chama a profissão dos gajos..."
David - Astronauta.
Gordo - Ya. Não, isso é o que ela diz. "Como é que se chamam as cavidades órbitas ou qual é o órgão que está na cavidade" e ela diz astronauta... (RISOS) Tive uma cena assim com uma chavala lá na loja. O que é que foi? Não me lembro.

(SILÊNCIO)

Mário - (que entretanto desenhou o bicho num papel) São estes bichos assim prateados? Estes são a traça do papel.
David - Ya é tipo isso.
Mário - Pois, são as traças de papel!
Gordo - (a bocejar) É o bicho do papel.
Mário - Eu tenho o armazém cheio dessa merda.
Gordo - Ya mas isso são os teus pais que chamam a isso a traça do papel.
Mário - Mas são mesmo traças...
Gordo - Á tráçáaa....
Mário - Às vezes também estão na roupa.
Gordo - Isso são traças. Tenho bué em casa. Não sei porquê mas sempre que as vejo é na casa de banho. A minha mãe tem para lá a caixa de cartão do Skip e o papel higiénico. Mais nada!
Mário - Na loja não há traças?
Gordo - Na loja há algumas.
Mário - Eu encontro-as sempre nos livros.
Gordo - (a cantar) Hoje à noiteee.... vou ficar! Em casaaaaa... Ficar!

Dedo pedinte

O desejo de pôr o dedo no ar para falar diante dos outros por intermédio do pensamento carrega em si mesmo o significado do escroto decrépito que nos faz rir. O dedo é pedinte quando pede o ar que respira só para si. A partilha aqui torna-se nula por contraste à imensidão do dar moedas cunhadas a mulas do campo.
O dedo pedinte é um animal de hábitos incontrolados e mal-vistos pelos que estão de fora. A criação de rotinas desprovidas de sentido complica a compreensão do comum mortal; as velas que ardem ocupam-lhe o espaço livre do pensamento de fumo (que não interessa a ninguém), vertem cera para dentro das narinas hostis. Tudo pela guerra do petróleo. Vadia.
O dedo pedinte tem a unha torta e balanceia-se hirtamente no ar imprevisível. Invisível. Comestível.
Os dedos pedintes que arrancam os dentes à dentada não podem nunca ser submetidos a cirúrgias invasivas. Lascivas. Sensitivas.

- Posso fazer uma pergunta? - pondo de imediato o dedo no ar.

- Força - diz-lhe o outro, atrás da árvore.

- O que são caixas vazias?

- Ninguém sabe.


Ilustração por Gordo

A cadeira em que me sento

A cadeira em que me sento levanta-se a olhos vistos. Entorto o pescoço para a cabeça não furar o tecto; o coração vive em permanente estado cardíaco; o cérebro funciona como zona de cargas e descargas a céu aberto.
Porque deitamos nós olhares esquivos à população? Acreditar que somos opacos na nossa essência. Que não nos deixamos ver sem que nos esforcemos por isso. (Quem diz que os olhos são o espelho da alma engana-se.) Somos todos peças construídas ao acaso, propositadamente, por nós próprios ao longo da vida. Até que o luar caia sobre as nossas vidas, vamos construindo pessoas em nós mesmos; damos-lhes corpo, voz, suor, movimento, fezes, choro e riso. Podemos ser o que quisermos, mesmo que às vezes não nos tornemos. Podemos ser tudo e todos, e chão e terra e ar (conheci um rapaz que queria ser pedra). A transição do bem realizável é extensa e complexa como quando tentamos abrir os olhos depois de levar um soco.
Na cadeira em que eu me sento...

Comunidade 1964 (extracto)

A promiscuidade: eu gosto. Porque me cheira a calor humano, me sobe em gosto de carne à boca, rne penetra e tranquiliza, me lembra - e por que não ?! - coisas muito importantes (para mim, libertino se o permitem) como mamas, barrigas, pele, virilhas, axilas, umbigos como conchas, orelhas e seu tenro trincar, suor, óleos do corpo, trepidações de bicharada. E a confusão dos corpos, quando se devoram presos pelos sexos e as bocas. E as mãos, que agarram e as pernas, que enlaçam.

Luiz Pacheco

quinta-feira, 14 de maio de 2009

(sem título)

Quando a chuva cai sente-se ansioso, preguiçoso de sentir o frio na ponta íntima do órgão reprodutor. O peso do testículo mole entorta-lhe a coluna que segue o caminho pecaminoso do corno acorrentado à dureza do rabo. Apanhado no cerco de uma tortura febril quer foder para cair no esquecimento dos outros. Irritado. Fastigado. Ergue-se nu afogado em garrafas de plástico vazias (húmidas e opacas). Os gargalos nauseabundos querem, à priori, ser tocados e cheirados por lábios suados. Ao acordar, o mau hálito atiça-lhe os intestinos que anseiam a libertação máxima do ânus. Queima a roupa suja na rua e arruma caixotes de pêras no armário da casa de banho para quando lhe apetecer comer.

Ilustração por Gordo

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Fajula

Sentada num galho de uma kigela,
a ovelha Fajula tem as pernas aborrecidas
e a nuca dormente.

À horas que o mocho lhe está a catar os piolhos
da cabeleira ruiva, emitindo guinchos
semelhantes aos de uma capivara.

Farta daquela monotonia,
Fajula dá um soco seco
na pança pregueada do mocho
e pula do galho para o chão.

Decide ir refrescar-se ao rio.
Segue caminho pela selva densa
e transpirada acompanhada
por um carrinho de mão que achou
há dias perto de casa.

O andar vaidoso segue o ritmo
do chiar da roda ferrugenta,
incentivando-a a começar uma dança erótica.
Esfrega as costas pausadamente
na pele eriçada de uma bananeira
e entrelaça os braços no melaço
dos frutos da árvore.

No clímax do momento,
os pés já doridos obrigam-na a parar por instantes.
Depois de pousar o carrinho,
pega no leque de Vaz que traz ao pescoço
e traça um risco na terra húmida.

Garagem

(Outra noite na garagem)

Mário - Caralho...
Gordo - Nãaaoooo!
David - Dá-lhe Ana...

(risos)

Ana - Eu não gosto de bater.
Gordo - Isso não é bater! "Nepia eu não gosto de bater..."
Ana - OHHHHH!
Mário - Não gostas?!
Gordo - Pá Ana vai pó caralho. Acabou-se.
Mário - Vá lá Gordo mete lá ai isso [computador] a tocar.
Ana - Tá a pensaaaar...
Gordo - Bueda estranho. Tenho rato mas está a bloquear.
Mário - Está a pensar.

(silêncio)

Mário - Tens isso bueda lento.
Gordo - Para a próxima trazes tu o teu!!!

(risos)

Gordo - Ya, recebi agora a carta para a entrega dos diplomas do IADE. FUCK YA!!!
Ana - Cerimónia de entrega de diplomas?!
Gordo - FUCK YA!
Ana - Eu não tive nada disso.
Mário - Cada faculdade tem a sua. Atãaaao...

(SKILLA MS Mixtape)

Gordo - Estes beats são malaicos, nigga...

(...o people dá em insane, LSD, black bombain, ácidos e cocaine...)

2ª Gravação/Garagem/12 de Maio 2009

Se Deus não existisse

«Caro Sr. A,

Se Deus não existisse, seria impossível pensar como os infelizes se conseguiriam erguer nas suas pernas afiadas e dar um passo em frente. Se por algum motivo viessem a deparar-se com tamanha afirmação penso, sinceramente, que não aguentariam a vida na Terra.
Porque no fundo se não existisse Deus como seriam eles capazes de se levantar cedo e começar a tratar de todas as rotinas que somos obrigados a cumprir para o dia poder prosseguir. Dou como exemplos lavar os dentes ou fazer xixi.
Até porque se Deus existisse não precisariam de descarregar a bexiga para se sentirem aliviados.
Porque Deus é fonte de perfeição que não entendo muito bem de onde surgiu. Porque nada é perfeito. A não ser Deus. Claro!
Se, coitados, tivessem contacto com uma teoria deste genéro não aguentariam e caíriam estatelados no chão sem qualquer hipótese de levantamento de dados corporais.
Se as pessoas soubessem que não existe Deus então aí a Terra vergar-se-ia condescendente ao sentimento de ódio que daí despontaria. Como já não tenho nenhuma entidade superior a observar de forma controladora os meus actos, pensariam eles, não tenho razão para ser bom. Ou mau. Posso ser o que quiser sem qualquer tipo de opressão. E esse sentimento resultaria numa libertação ampla que desbloquearia as mais infímas porções de memória colectiva.
Digo isto porque somos todos um só. Só aqueles que acreditam Nele ainda não o perceberam. Mas se é isso que funciona como o alimento de cententas e centenas de gerações ingratas resta-me apenas baixar os braços e sorrir.

Com os melhores cumprimentos,
XXX»

Alberto

O Alberto tem muitas coisas para contar.
Talvez não muitas, algumas.
Mentira.
O Alberto não tem nada para contar.
Vive numa gruta. Sozinho.

Mas sente, sente muito.
Às vezes tem necessidade de fazer explodir
As sensações do corpo,
Sentir-se livre da ânsia de ser.

Está apaixonado, o Alberto.
Pela mãe das compulsões, convulsões, sensações.
Pudera ele sentir-se vivo. Ou morto.

barba-de-Velho

A viagem foi longa. Deixou para trás rios, vales e montanhas. Escanzelado, o Cara Pálida parecia fastigado pelo vento e pela chuva que o aterrorizaram durante a caminhada; a dor proveniente de dentro castiga-lhe o ar que sai dos orifícios nauseabundos do subsolo.
Sabia que chegara ao destino. - Quando sentires o aroma a óleo envernizado que te apaziguará a alma saberás que chegaste-, disseram-lhe em miúdo.
Estava perante sete portas brancas. Aproximou-se da quinta a contar da esquerda. Devagar. Nela estavam inscritos quatro papagaios com grandes caudas padronizadas a roçar no chão, presas por cearas de trigo. Berravam em uníssono - Entra, entra, entra...
Não aguentou mais e rodou a maçaneta da porta.

- Au!!! - gritou o Cara Pálida.

Do outro lado da porta um cisne dourado embriagado mordeu-lhe o tornozelo e fugiu a correr deixando um monte de penas a flutuar no ar.

- Entra meu amigo - ouviu-se do fundo da sala - Demoraste a chegar...

Deu dois passos em frente mas recuou ao deparar-se com a figura tenebrosa do Barba-de-Velho. Ficou inerte. Uma pomba branca voava para a frente e para trás. O chão albergava uma manta de plátanos secos, outonais, que estremeceu com a passagem de duas zebras. Começava a sentir-se tonto.

- Não te preocupes. Ninguém te vai magoar. - precaviu o velho de barbas.

Mas o Cara Pálida não ouviu as palavras sábias do mestre. Estava hipnotizado pela mulher deitada na banheira no canto da sala. Vestia um maiô e uma exuberante saia de tule preto.
As pernas grossas e rudes constratavam com a doçura dos seus movimentos. A bailarina dançava com o silêncio que se instalara na sala. Parecia não notar na presença do Cara Pálida. Nem do Barba-de-Velho.
A atenção do Cara Pálida só foi interrompida com o brusco bater da bengala decrépita do velho.

- Pensas que tenho muito tempo, não é?
- Não, não. Sofri bastante para chegar aqui...
- Então o que te traz aqui?
- Quero uma mulher!
- Hum.... E que tipo de mulher gostavas de ter?
- Qualquer uma.
- Só apresentas uma condição?!
- Quero uma mulher com a pele do rosto branca e macia. Que o seu cabelo seja brilhante e perfumado por margaridas ao sol.
- Mais alguma coisa?
- Quero uma mulher tolerante e fiel.
- Muito bem. Volta daqui a dois dias. Terei a tua mulher.

---

Fechou a porta e encenou o som dos passos a esvanecerem-se no espaço. Encostou o olho à fechadura. Nunca ninguém se atrevera a espreitar os feitiços do Barba-de-Velho. Durante dois dias, o velho assente num enorme pénis que lhe circunda as ancas, folheou milhares de livros envelhecidos e sussurou cânticos disformes. Rosnava e gemia. Tudo ao mesmo tempo.
Ao final do segundo dia, os olhos esbugalhados do Cara Pálida estavam vermelhos e chorosos. No momento em que decide esfregar agressivamente a vista ouve-se um grande estrondo. Olhou rapidamente para a fechadura. Uma mulher recém-nascida parece ter despontado dos plátanos outonais mesmo no centro da sala. Nua. Com a pele do rosto branca e macia. Levantou-se, rodou a maçaneta e entrou de imediato. Aproximou-se daquele pedaço de nudez e deixou cair os joelhos no chão.

- Aqui tens o que pediste.
- Mas... como é que... não posso acreditar!
- Deixa-te de conversas. Onde está...
- Está tudo aí como combinado - disse o Cara Pálida entregando-lhe um objecto piramidal com um enorme olho vivo no centro.

Olhou novamente para a perfeição. O corpo da mulher estava coberto por uma substância peganhenta. Pouco a pouco, começava a desentorpecer os músculos e a esticar a pele. Não tinha dentes, nem lábios. Pestanejou pela primeira vez pondo a nu dois olhos de vidro. O Cara Pálida empalideceu ainda mais. A sua face ficou translúcida, pondo a nu o carreiro de vermes que percorre constantemente a sua bochecha. A grossa veia azul que lhe atravessa a testa ficou desnuda.

- Esta mulher é cega?
- Isso preocupa-te?
- Eu não lhe pedi uma mulher cega.
- Eu criei o que me pediste: uma mulher branca, com pele macia, tolerante e verdadeira.
- Mas...
- Não posso perder mais tempo. Até à vista.

O Barba-de-Velho não conseguiu esconder a sua insatisfação com o desejo do Cara Pálida. Julgara o rapaz mais sentato.

- O amor não se pede, nem se define. - sussurou o mestre, caindo num buraco de esperma provocado. Orgasmo.

Ilustração por Gordo

Beijo de Língua

Foi o castigo do Beijo de língua. Abandonar a tribo e nunca mais voltar.
No dia do julgamento final, trazia uma espécie de fralda vermelha atada à cintura, um longo turbante da mesma cor e um exuberante cachimbo de cânhamo na beiça gorda.
O som final do corno de elefante infiltrou-se nas narinas grossas de todos os indígenas da tribo. O seu destino está traçado.

- Desgraçado é que eu não sou. Riam-se à vontade que eu rio-me ainda mais - gritava com as mãos levantadas para o céu.

As bongadas que dava no cachimbo enchiam a sala de fumo denso, intangível. Seguiu-se um momento de cânticos e dança em torno de um varão improvisado para o julgamento. Depois o Beijo de língua abandonou o recinto e nunca mais voltou.

Camaleão dourado

Triste do camelão que com o seu violão
não se transforma em natureza.
A beleza não marca presença na paixão
e vive sem a diferença da cor.
Desamor pela Vida ingrata
que não o faz sorrir.

Vive por consolação
Chora por saudade.
E evita mostrar o pranto do seu coração.

O seu peito espirra
ao sentir o calor
do corpo frouxo.

O camaleão pintado de dourado
enlaça a língua esguia
no corpo oleado
E dá carinhos à Mãe
que lhe dá a esperança parva
de ser feliz.

Metamorfose (exercício)

Ofélia chegou a casa cansada. Os músculos entorpecidos mendigavam descanso; deitou-se bruscamente no sofá grande da sala e fechou os olhos por instantes. A princípio, ainda ouvia os berros da vizinha do andar de baixo, uma senhora atarracada e antipática. Mas pouco a pouco estes sons foram-se dissipando no ar.
Adormeceu e só acordou na madrugada seguinte, ainda de noite. Ao bocejar, sentiu um gosto ácido e corrosivo na boca que a fez recordar o sonho que tivera. Estava no deserto onde, à sombra de um camelo, passara horas a devorar um pássaro vivo.Esfregou a vista que, presa ao sono, hospedava umas estranhas borras castanhas. Esfregou uma e outra vez mas nada. Continuava a ver mal.
Apesar de não ver desfocado - aliás o que via era bastante nítido -, tinha umas quantas manchas opacas que lhe sujavam o ângulo. Olhou em redor e perdeu a sala de vista. Era agora uma enorme sala de estar com abruptas peças de mobiliário envernizadas.
O acto de esticar os braços para se espreguiçar resultou num enorme susto. Viu-se assombrada por quatro patas pontiagudas, duas de cada lado. Deixa-se cair mais uma vez. "Mas que raio vem a ser isto. Ainda devo estar a sonhar", pensou.
Começava a sentir que alguma coisa estava errada. O corpo permanentemente dormente apresentava uma coloração esbranquiçada, tinha uma leve penugem debaixo das patas e
um orifício quadrangular na cara através do qual espelia um líquido azul que corroía a capa de plástico do sofá.Em esforço, apoiou a parte lateral do corpo nauseabundo nos membros direitos e em desiquílibrio tombou novamente. "Isto não pode estar-me a acontecer. Tenho de conseguir levantar-me", repetia para si mesma.
Mas por mais que tentasse, essa tarefa tornava cada vez mais difícil. Decidiu parar para aclarar as ideias e ouviu o estômago roncar. Parecia estar com fome e só lhe vinham à cabeça escorpiões crocantes e osgas sumarentas. O sol começava a entrar pelos vidros da sala. A sensação de calor no corpo fê-la perder forças e instintivamente levantou-se num ápice e refugiou-se agilmente debaixo do sofá. Deu por si a esfregar a barriga do corpo nos azulejos frescos para voltar
a si. Pela primeira vez, os novelos de cotão não a incomodoram. Pareciam mesmo desviá-la daquela realidade absurda.
Enquanto se roçava sensualmente nas bolas de pó, ouviu a porta a abrir-se. "A esta hora da manhã, só pode ser a dona Rosa", pensou.
Aproximou-se com receio da luz. Viu os sapatos ortopédicos da empregada passarem à frente do sofá e deu um pulo para trás. Só agora lhe ocorrera que era dia de limpezas. Tinha que fugir dali o mais depressa possível se não queria ser sugada pelo tubo do aspirador. Ao sair do seu esconderijo, começa a correr desenfreadamente por cima do tapete de arroiolos em direcção à mesa de jantar.
A ânsia de chegar à varanda dispara quando se vê numa encruzilhada de pernas de cadeira. Sabia que a dona Rosa não perdoaria a sua presença. Se a avistasse iria provalmente bater-lhe com a vassoura quantas vezes fossem necessárias até que estivesse esborrachada aos seus pés. E só essa imagem provocava-lhe vómitos.
Ultrapassado o desafio das cadeiras, chega finalmente à porta da varanda e avança para a rua. Entretanto, o sol que se pusera alto, tinha aquecido os azulejos laranjas do chão. Sufocada, Ofélia viu as suas patas começarem a derreter. Começava a perder os sentidos, suava abundantemente e os vapores do líquido azul queimavam-lhe os intestinos. Tinha de voltar para dentro.
Desanimada, Ofélia puxou o corpo pesado no caminho inverso até se abrigar à sombra da porta. Permaneceu imóvel durante alguns segundos mas logo reparou na presença de Rosa.
De início, o rosto da senhora já com alguma idade empalideceu ao ver aquela criatura nojenta. Revirou os olhos, ergueu a vassoura no ar e tentou matar Ofélia. Em vão. O estado de nervos em que se encontrava não lhe permitia dar firmeza aos movimentos da mão e falhava constantemente o alvo.
Esta atitude de desprezo irritou Ofélia. Imprevisivelmente introduziu as suas mandíbulas no tornozelo da velha e sugou-lhe uma quantidade desmedida de sangue. Ofélia começava a acreditar que aquele acto não premeditado permitiria ganhar-lhe algum
tempo para encontrar um bom esconderijo. A senhora afastar-se-ia dela depois de ser mordida e enquanto iria buscar ajuda ela abrigar-se-ia num bom local. Mas não foi isso que aconteceu.
Mal largou o tornozelo, a Dona Rosa estatelou-se no chão. Só agora lhe ocorrera que aquele
líquido azul que espelia constantemente podia ser venenoso. Nunca lhe passara pela cabeça que pudesse matar alguém e agora tem à sua frente aquele peso morto com o qual não sabia o que fazer.
Decidiu esconder-se novamente debaixo do sofá e aí ficou durante vários dias, sem beber nem comer. Estava fraca e perturbada. Sabia que a morte se aproximava mas optou por
antecipá-la. Esperou que o sol se pusesse alto, mais uma vez, e dirigiu-se até à porta da varanda. Inspirou fundo e avançou.

Pombo Inocêncio pelo Chiado

O pombo Inocêncio, arrulhando pelas ruas do Chiado, pavoneia o seu rabo de leque numa manhã solarenga. Outrora fora considerado o exemplar mais nobre da sua espécie. Ostenta um exuberante papo inchado e uma leve pigmentação verde esmeralda junto ao olho direito.
Mas a sua popularidade logo se dissipou. Numa manhã quente como a de hoje, Inocêncio decidiu repousar alguns minutos no colo de Fernando Pessoa. Na altura, passou por alguns problemas de saúde. As suas patinhas andavam inchadas e sangravam bastante. Mas durante a sesta, Inocêncio viu-se despertado por um odor irresistivelmente delicioso. Era o cheirinho a pastéis de areia frescos. E logo que tentou levantar voo para se aproximar do seu doce predilecto viu as suas asas paralisarem.
A trágica notícia, como era habitual, correu de pombo em pombo e em menos de uma hora era o alvo de troça preferido da Comunidade Lisboeta de Pombos. Mas, enfim, Inocêncio não se deixou abater pela sua pobre condição - tal era o tamanho da sua vaidade - e todos os dias passeia de papo erguido na rua.
Mas voltando atrás. Manhã solarenga. Ao longe, Inocêncio avista uma desfocada mancha amarela que lhe indica ter chegado ao destino. Este pombo, em particular, mostra um fascínio desmedido por cores. É através delas que se orienta pela cidade. Desvia-se apressado das pernas gigantescas que lhe surgem à frente e, chegado à esplanada, assenta o corpo em duas pedras da calçada e mantém-se imóvel. Este acto é crucial. O bicho de penas aprendeu a não roçar-se nas pernas dos humanos para obter alimento. Pelo contrário, a sua estratégia assenta na espera pelo momento de atacar. Ou melhor, de correr, porque quando se nasce pombo a rapidez é uma característica indispensável (além do levantar voo, mas essa já não lhe interessa).
Surpreendentemente, um pedaço de amêndoa vindo do nada cai com força na sua cabeçita. Talvez um humano estúpido se tenha engasgado e regurgitado este maravilho manjar dos Deuses. Um pouco viscoso é certo, pensou ele, mas isso não é impedimento pois Inocêncio nunca recusa alimento. Basta olhar para a sua pança gorda e repuxada.
Nesta fase, Inocêncio sente-se especialmente confiante e decide arriscar. Aproxima-se discretamente dos pés mexidos na esplanada e encontra um pedaço de fiambre seco no chão.
A Comunidade Lisboeta de Pombos, ao contrário de outras comunidades animais, não estipula qualquer tipo de regras no que toca à alimentação. A lei do mais forte torna-se assim imperativa, ficando cada um à sua mercê. Apesar de já não ser acariciado pela Comunidade, dita intelectual, Inocêncio exerce o cargo maior do "mercado paralelo" naquela zona. Governa um grupo de pombos rebeldes que se dedicam ao contrabando de milho. Um negócio que, apesar do excessivo controlo, lhe concede algum estatuto na cadeia hierárquica da sua espécie.
E no fundo é só isso que Inocêncio deseja. Estômago cheio e uma posição social elevada. Seja ela boa ou má.

Tempestade

A inquietude de Teresa é clara. Há já algum tempo que anda de um lado para o outro em passos largos sem razão aparente. O longo vestido branco que tem vestido acaricia a superfície da carpete da sala e com as mãos trémulas encaminha o copo de absinto à boca que se escoa lentamente pela garganta dorida. Decide sair de casa para aquietar a fúria. Os olhos estão cobertos por uma névoa branca que dificulta a terrível vontade de focar.
Num acto tosco, tropeça num tronco de árvore perdido no passeio e desata-se a rir. Achava que a sua existência era em quase tudo semelhante à daquele tronco morto na rua. Ou pelo menos era isso que as vozes lhe sussuravam ao ouvido. E acreditava porque não havia qualquer razão para não acreditar.
Durante o passeio, é surpreendida por uma chuva chata que lhe provoca espasmos visuais. Vê-se obrigada a fintar riscos luminescentes e disformes que se entrelaçam no seu caminho, criando uma espécie de carrocel antigo.
As nuvens começam a aproximar-se. Vê as pernas esticarem-se no ar ao mesmo tempo que sufoca num pedaço de tule cinza. Pressente a tempestade. O ruído do vento forte insinua-se nos seus ouvidos provocando-lhe suores frios. Mas os pés sóbrios continuam a trabalhar levando-a por um caminho sinuoso e inconstante.
Após um raio estrondoso, ouve finalmente os gorgolejos do Testa Azul. Sabia que o encontraria ali, reflectido na água tépida do rio Lave. O aspecto pomposo da sua penugem verde musgo transmite a Teresa um indescritível apaziguamento de sensações.
Assim, empoleira-se na margem do rio e passa com os dedos naquela imagem imutável. Os seus contornos estremecem ondulantes mas logo voltam à sua forma original. Teresa está agora em paz.

terça-feira, 12 de maio de 2009

White Rabbit/Jefferson Airplane

One pill makes you larger
And one pill makes you small
And the ones that mother gives you
Don't do anything at all
Go ask Alice
When she's ten feet tall
And if you go chasing rabbits
And you know you're going to fall
Tell 'em a hookah smoking caterpillar
Has given you the call
Call Alice
When she was just small
When men on the chessboard
Get up and tell you where to go
And you've just had some kind of mushroom
And your mind is moving slow
Go ask AliceI think she'll know
When logic and proportion
Have fallen sloppy dead
And the White Knight is talking backwards
And the Red Queen's "off with her head!"
Remember what the dormouse said;
"Feed your head, feed your head".

Mais cadê seu Coco?

Senhora Coca mora num país tropical. Lá, o calor é tanto que derrete os que se atrevem a deixar crescer seus bigodes. Lá, existem fruteiras na areia das praias. Porque quando se encontrou pela primeira vez com a Vida, sentiu-se realmente uma fruta exótica que faz salivar a boca do rosto que jaz no pé da fruteira.
Mais que isso. Foi nessa fruteira que nasceu o amor entre a Srª. Coca e o Sr. Coco. Porque assim que os fios ásperos castanhos um do outro se tocaram pela primeira vez sentiram um arrepio na casca. Mas com o passar do tempo o amor do Sr. Coco foi-se esmorecendo. Não conseguia resistir à pele enrugada da Srª. Laranja ou ao toque aveludado do Sr. Pêssego. Chegava constantemente a casa com raspas do Sr. Limão nas sobrancelhas peludas ou com gordura da Srª. Banana entranhada nos buracos da casca dura.

Todos os dias, as frutas mais próximas perguntavam à Srª. Coca:
- Mais cadê Seu Coco?
E sempre que lhe faziam esta pergunta, não tinha resposta.

[O Sr. Coco tornara-se ágil nas suas escapatórias pela fruteira na praia.]

Num dia acalorado, o Sr. Coco chegou perto de sua mulher, sambando...
O cheiro a melancia foi a última gota para a Srª Coca
que não aguentou e despediu-se do Sr. Coco para sempre.

Agora, sempre que as amigas frutas lhe perguntam:
- Mais cadê Seu Coco?, responde:
- Mais qual Seu Coco? - apontando para o Sr. Melão e piscando-lhes o olho.

Pinguim japonês

Os olhos não mentem. Aquilo que vemos, temos a certeza de ser aquilo que realmente ali está, especado à nossa frente ou ao nosso lado. Desde que nascemos vamos aprendendo lentamente o papel do olhar e qual a melhor forma de lidar com ele.
Mas o caso de Edgar contraria esta tendência. Desde que tem consciência de existir, o rapaz aprendeu a controlar a visão. Através da mente vê apenas aquilo que lhe apetece ver. Mas para alcançar este estado avançado de liberdade foram necessárias preciosas horas de treino e concentração da mente.
Edgar sabia que as probabilidades de alguém se cruzar com um pinguim japonês eram escassas. Mas a verdade é que os seus olhos mostravam-lhe um pinguim japonês a passear desajeitado pelo centro de Tóquio.

Dejectos

Da forma que eu gosto
os pecados dão a volta à terra
num murmúrio lastimável
envoltos em cinzas usadas
como as cuecas do alberto

sujas, lá andam elas,
apetrechadas de esgotos portáteis.
Nauseabundos armazéns
de dejectos navegáveis.

Prestam homenagens infelizes
àqueles que face à infortúnia da vida
caleijam os calos dos galos
inseguros nas suas patitas ridiículas

Cristais encrustados
na matéria morta do ser invisível
que somos todos nós.

Basta renunciarmos à nossa condição. Verdade.
Poços de multidões
ansiosas por ter e não por ser.

Ser ou não ter: Eis a questão!

Dois louva a deus no alto de uma montanha

No meio da bosque, a mulher, com o seu vestido azul, sente-se encurralada pelo véu transparente de fibra que descortina a invariável tendência existencial. A mesinha do café está torta no centro do plano agreste e a mulher tropeça incessantemente nos ramos podres caídos na cozinha. É hora do leite. Tira para fora a mama esquerda enrrugada e dá de amamentar ao filho mais novo. Insaciável. Os sinos começam a tocar do alto da montanha. Sinal de morte. Repentinamente vê-se forçada a dar passagem a quatro anjos estranhos que vão nus com um lenço preto na cabeça e asas escarlate. Transportam uma criança morta no cimo de um caixão envelhecido. O corpo vai preso por pedaços finos de cortinados acetinados.
(A caminhada fúnebre prosseguiu por mais dois dias.)
Os quatro anjos poisam agora o caixão no cume da montanha. Dois louva-a-deus estão sentados, frente a frente, numa mesa quadrada. Com os cotovelos assentes na toalha de mesa aos quadrados brancos e verdes, falam ininterruptamente num idioma estranho, certamente codificado pela garrafa de vodka que jaz, serena, no canto direito da mesa. Só agora reparam no corpo já em decomposição no cimo do caixão (os anjos desapareceram no nevoeiro) e levantando-se num ápice, os dois erguem simultaneamente as patas dianteiras para o céu e num gesto compulsivo terminam a noite com um santo banquete. Santa comida.

O elefante sem patas

No horizonte longínquo já se avistam os primeiros raios madrugadores que desde cedo começam a labutar nas efémeras ondulações de areia granulada. Avisto, ao longe, um elefante negro a esboçar um sorriso saído directamente da tromba enrrugada situada na extremidade longínqua do membro exterior. As patas bamboleiam lentamente sob o ar denso que atravessa os meandros das suas unhas grosseiras e ligeiramente afiadas. Caminha vagaroso pelo deserto sub-africano do continente espesso e levanta, de vez em vez, o rabo para se inteirar do que se passa atrás de si.Assusta-se repentinamente com o toque lívido de uma cobra verde-água que serpenteia o areal mascavado e estilhaçado pela aragem.

- Boa tarde, Srª. Cobra! Como tem passado? - questionou curioso o pesado bicho.
- Ora, Ora... Estou muito bem, obrigada. E o Sr., como se tem aguentado com tanto calor? Este ar quente não perdoa os membros inferiores de nenhum animal, não é verdade?
- Ai, nem me fale nisso. Fui forçado a amputar as patas... Pensei que tivesse reparado nisso no preciso instante em que o meu coto e a sua pelagem ácida tiveram um encontro memoravelmente assustadiço da minha parte.
- Mas como aconteceu esse terrível acontecimento? - perguntou a cobra, sem conseguir disfarçar a sua incomensuravel curiosidade.

O elefante negro, claro, ávido por contar a sua história, ergueu com firmeza as rugas do tronco lugúbre, endireitou a garganta com uma tosse forçada e pestanejou duas vezes dando ênfase aos olhos repentinamente brilhantes.

- Bem sabe como gosto de me esfregar nos prazeres do pantâno. Aquele que... você sabe do que estou a falar...
- Se sei... - disse receosa a cobra baixando o olhar.
- Comecei a sentir os primeiros sintomas há uma semana. Seria inimaginável pensar que por cada vez que respirasse as minhas patas aumentassem de tamanho. Ainda consegui a proeza de não respirar durante um bom período de tempo mas logo fui apanhado despercebido por uma brisa vadia que, veja só a minha má sorte, me fez espirrar incessantemente. Entre um espirro e outro era obrigado a abrir os pulmões com uma longa inspiração. Sempre assim... entre um espirro e outro... repirava longamente.

Enquanto o elefante contava a trágica notícia, a cobra contorcia-se angustiada, iniciando um processo lento de escamação. De seguida começou a agir de forma descontrolada, um acto que infelizmente deixou transparecer o seu estado de histerismo interior.

- E pronto.... O resto da história a Srª. Cobra já deve ter calculado como se orquestrou. Quanto mais espirrava mais as minhas patas inchavam. Um espirro correspondia a um centímentro rápido de crescimento e... PUF!!! Repuchadas, as minhas patas não aguentaram a pressão e rebentaram.

O elefante despediu-se da Srª. Cobra e seguiu caminho. Continuava triste por a sua curiosidade lhe ter roubado as patas.

Ostras

apelo à seriedade,
que complete o espírito daqueles que,
pobres,
são apenas adornos de uma sociedade
lógica de carácter aristocrático

comunidade. liberta o acto de racionalizar
solta o ar gélido, fastio,
grande mundo pequeno
antíteses
palestras

orquestra das pupilas que vão nuas
com pele sedosa e mamilos secos
a apontar para o chão

sentir o álcool do vinho (tinto, !)
a flutuar nas veias intravenosas
terrenas de anestesias plenas
poros que transpiram a álcool vadio
a fantasmas invisíveis
que nos circundam as mãos fracas

colares de fabrico próprio
pastelaria.

o rato que roeu
a rolha do vinho morreu.

mente impregnada de fumos densos
irascíveis, belos artifícios de chaminés saudáveis

sem dúvida.
Deus capaz de nos salvar
da rede múltipla de realidades pecaminosas, cruas,
não, não quero salvamentos.
já disse que não, não insistam.

Metal pesado pesa nas costas
"Gordo on my mind"
lá vai ele, esguio, fininho,
meio amarelado pela avenida das mercearias
saltitando pela calçada.
Parece feliz o rapazito esguio e fininho,
Coitado.

Ostras, sexo, corpos nus enrolados em mortalhas finas
transparência de suores frios,
prazer, clímax,
Paraíso. Perfume.

Guitarras ruídas de inveja,
cortam as cordas da lucidez
e infectam os ouvidos de pus branco

Libella, Libella,
porque voas tu Libella?
Não, não digas isso,vai por mim e voa.

São precisos cinco jacarés alegres
Para me fazer rir. Good morning Peru.
Com alface e tomate fresco da mercearia

Ai, ai, ai e as pernas abrem-se,
convulsas e tortas,
provocando o coração que fraco
vai batendo, devagar, pelo chão
No ordinary love...

A menina do quadro azul

O olhar cabisbaixo enxerga os sapatos rasos pretos e as meias brancas, rendadas no cimo. As mãos enfraquecidas seguram as cordas do baloiço do quintal, as nádegas passam a fase dormente e adormecem. A face está escondida por uma grande cabeleira negra, atada atrás do pescoço. Parece estarrecida pela dor de não ser nada além de uma carapaça podre perdida no espaço algures no tempo de alguém. Saber que é pó. Ilusão. Massa bruta de solidão. Universo. O acto de pensar naquele quintal quadrado traz à tona gemidos tristes e estridentes.

Parece admirar a lentidão do cérebro fastidioso e comprimido [medicação] a menina do quadro azul.

Ali o espaço é sempre sombrio. Só a luz vinda da janela transmite uma espécie de Vida qualquer. Ao seu lado, uma árvore, sem folhas nem frutos. Galhos secos atados a troncos mais corpulentos.
Ao olhar para aquela imagem criamos instintivamente movimento e som. Ao olhar para a menina do quadro azul criamos o movimento de vai e vém do baloiço que afasta a mexa de cabelo que lhe tapa o rosto.
Mas isso não passa de imaginação. Aquele ambiente não deixa de ser impenetrável. Aquela menina não passa de uma imagem estática. E aquilo que poderá pensar será sempre um mistério.

Camilo que chora

Camilo deita-se na cama de pernas para o ar e chora. Deve haver o perdão daqueles que não vêem a porta aberta, escancarada.

Levantou os braços para o tecto,
cai uma lágrima, depois outra
pela sua face pálida. Triste.

Linda menina nua que vaidosa e airosa
Vai cantando o "Bom dia!" pela avenida.

Ai como as mãos ásperas do Camilo gostavam de sentir
as pernas macias e sedosas da menina
que canta airosa por Lisboa

Dor maior de não se conseguir ausentar da Vida!

Acontece que já não sabe mais amar. E ela não merece. Ai se ele pudesse amar mas isso não acontece.

Camilo chora.

O mero e o pardelo

À tona de água, o mero está de barriga para cima a dormir uma sesta, testando a paciência do pardela-de-óculos que circula por aquelas bandas. O ressonar sonoro do bicho faz a água tremer à superfície da tona terrestre. Em sentido inverso. Um amigo do pardela-de-óculos havia-lhe falado de uma zona que havia sido abençoada por Deus. [Alberga algas, bactérias e camarões em abundância aquática.] Decide por isso acordar o mero. Pega num espeto de crocodilo e pica ferozmente o dorso central do peixe.

- Ai, ai, ai, ai.... Mas quem és tu para me acordares desta maneira?!
- Só quero pedir uma indicação. Não me leve a mal, mas tenho pressa.
- Pressa?! Mal qual pressa?
- Pressa! Tenho fome.
- Hum... Já estou a perceber tudo...

O pardelo ficou sem palavras e permaneceu quieto para não aborrecer ainda mais o mero. Entretanto o animal aparentemente chateado, engasga-se na saliva e desata às gargalhadas. Ficaram assim umas duas horas. O pardela-de-óculos parado e o mero divertido com a sua própria baba.
Mas o comportamento excessivo do mero começava a irritar o pardelo. Que falta de consideração, pensava. E catrapumba! Impulsiona a barbatana esquerdina para trás e atinge em cheio nos dentes castanhos do mero. Este por sua vez abre a boca e engole de uma assentada o pardelo.

- Agora é que vais ver... Ninguém se mete com o mero, já devias saber isso.
- Por favor, não me engulas. Suplico-te.
- Vá, vá, vá. O que é que me dás em troca?
- Como assim? Não tenho nada para te dar, a não ser...
- Diz, diz, diz...
- Acho que não ias gostar...
- Diz, diz, diz...
- Falaram-me por alto de um sítio... O lago de Deus, conheces?

Os olhos do mero abriram-se. A mãe mera sempre lhe garantiu que aquele lago era um mito dos mares do Norte. Mas agora...

- Sim, já ouvi falar. Sabes onde fica?
- Sei.
- Conta-me!
- Primeiro tens de me libertar. Foi o que combinámos, não foi?

Como ficara estabelecido, o mero soltou o pardela e este segredou-lhe ao ouvido a localização do lago. Nisto, o mero desata-se a rir outra vez. Não conseguia conter a emoção. Ria-se e ria-se desalmadamente.

- Até à vista, Sr. Pardela.
- Faz boa viagem e não te esqueças de parar de vez em quando. O caminho é penoso.

Mas o mero já se tinha afastado a grande velocidade pela água tépida dos mares do Sul para conseguir ouvir o conselho sábio do pardela. Entretanto, o zumbido da raia-viola acelera os batimentos cardíacos do bicho de óculos.

- Quem anda aí? Quem anda aí?
- Sou eu, a raia-viola. Não se assuste.
- Por momentos pensei que o mero tivesse desistido.
- Passei agora mesmo por ele. Parecia estar com muita pressa, nem me dirigiu um olá...
- Pois, vai em busca do lago de Deus.
- Mas esse lago é um mito!
- Pois é.

Prazer feminino

"Rir? Pensamos alguma vez em rir? Quero dizer rir verdadeiramente, além da brincadeira, da troça, do ridículo. Rir, gozo imenso e delicioso, gozo completo...
Dizia à minha irmã, ou dizia-me ela a mim, anda, vamos brincar a rir? Deitávamo-nos lado a lado sobre uma cama e começávamos. A fingir, claro. Risos forçados. Risos ridículos. Risos tão ridículos que nos faziam rir. Então chegava o verdadeiro riso, o riso inteiro, que nos transportava no seu imenso rebentar. Risos sem gargalhadas, redobrados, desordenados, desenfreados, risos magníficos, sumptuosos e loucos... E ríamos até ao infinito do riso dos nossos risos... Oh rir! rir de prazer, o prazer de rir, é tão profundamente viver.

O texto que acabo de citar é extraído de um livro intitulado Parole de femme. Foi escrito em 1974, por uma das feministas apaixonadas que marcaram, com um traço distintivo, o clima do nosso tempo. É um manifesto místico de alegria. Ao desejo sexual masculino, votado aos instantes fugazes da erecção, portanto fatalmente ligado à violência, à aniquilição, ao desaparecimento, a autoraopõe, exaltando-o como seu contrário, o prazer feminino, doce, omnipresente e contínuo. Para a mulher, desde que não esteja alienada à sua própria essência, comer, beber, urinar, defecar, tocar, ouvir ou até estar ali, tudo é gozo. Esta enumeração de volúpias estende-se ao longo do livro como se fosse uma bela litania. Viver é uma felicidade: ver, ouvir, beber, comer, urinar, defecar, mergulhar na água e olhar o céu, rir e chorar. E se o coito é belo, é porque é a totalidade do prazeres possíveis da vida: o tocar, o ver, o ouvir, o falar, o cheirar, mas também o beber, o comer, o defecar, o conhecer, o dançar. O aleitamento também é uma alegria, até o parto é prazer, a menstruação é uma delícia, essa saliva morna, este leite obscuro, esse corrimento morno e quase açucarado do sangue, essa dor que tem o sabor ardente da felicidade.
Só um imbecil sorriria deste manifesto da alegria. Toda a mística é exagero."

Milan Kundera, in "O livro do riso e do esquecimento"