quinta-feira, 13 de maio de 2010

Sonho de Hipnos

Não sei se durmo ou se estarei acordado. Mas sinto-me velho. Tenho o bigode despenteado de tanto amimar a almofada e não acho a parte de cima do meu pijama geométrico. De certo que estarei dentro de um sonho. A minha realidade sonhada. Remexo a cabeça e não encontro nenhuma visão do mar. Pois o que significará o mar para mim senão uma onda de força inatingível que me deixa perplexo a cada visão sua. Rendido, ainda tentei apanhar a cabeça que entretanto se desprendeu do meu pescoço e começou a rebolar colina abaixo, até embater contra uma rocha coberta de musgo que me pareceu macia. Lembro-me do campo de tulipas que um dia hei-de visitar. Ao longe, parece um campo de malaguetas com a ponta acesa onde acendo o segundo cigarro do dia. A partitura invisível, em estado selvagem, movimenta-se em torno do meu próprio corpo, composta ora por sopros de árvores, ora por espirros de peixes ao luar. Acredito no Deus que somos todos nós, homens e corvos. Acredito naquilo que vejo e não naquilo que os olhos me dizem. Para quê olhar (pois se tudo é luz-ilusão) quando podemos ter todas as sensações depois de adormecer. Vivo ciente das ciências da natureza. Não distingo cores, formas ou consistências. Tudo consequência das sopas de cavalo cansado que me davam de comer ao pequeno-almoço. Quando comecei a salivar uma cubana de ancas largas caiu desamparada em cima de mim. Não aguentei a pressão. Tudo ficou escuro de repente, pois ela trazia uma saia que lhe chegava aos pés, de tecido grosso alaranjado. Belisco a pele frenética em busca do sentido real das coisas mas ela fica irritada e grita-me que volte a mim. Eu consinto e baixo o pescoço porque a cabeça já era!

quarta-feira, 21 de abril de 2010

A casa muda

Eram cinco naquela casa minúscula, doentiamente claustrofóbica, onde apenas o chão se fazia ouvir rangendo. Um deles estava preso na despensa há mais de cinco anos. Ninguém sabia dela. Mas também ninguém perguntava. “Para quê?”, ruminavam em silêncio, em longos monólogos interiores, que nunca os levavam a lado algum.
Naquele dia, o chefe de família levantou-se mais cedo em relação ao que estava acostumado. Precisava de cortar as unhas antes de sair para o trabalho. “Putas que não páram de crescer” praguejava. Virou-se para o lado e pediu à matriarca para acender a luz porque a lâmpada do candeeiro do seu lado estava fundida há séculos. Notou que estava sozinho e empalideceu. Primeiro de espanto. Depois de medo. Seria um sonho? Veio a dúvida e o patriarca chorou, chorou e chorou...
Não sabia ele que ela estava presa na despensa por opção. Sabia que ninguém se lembraria de procurá-la nas traseiras da casa, ninguém lá ia, muito menos à despensa.
Era uma família estranha que só sabia dar silêncio. Em troca, esse silêncio vinha e embatia reflectido no outro lado do espelho, e mais silêncio ainda. Ocasionalmente, a irmã dela largava um ou outro gemido em cantiga, ora quando lavava a loiça, ora quando se deitava à noite para atear fogo à flor. De resto, nem “ui!”.
Os que lá iam achavam aquela convivência disparatada de pessoas disparatadas profundamente aflitiva. Maldita casa sem voz. Lembro-me que aceitei visitá-los para me esquivar ao trabalho da parte da tarde. Mal toquei à campainha, abriram-me logo a porta sem perguntar sequer quem era. E se eu fosse algum louco varrido? E se em vez de mim estivesse à porta um gorila? Ou o meu patrão?
Mas no final daquela tarde, mesmo sem se terem feito ouvir, só posso acreditar que eles adoraram a tarte caramelizada que comprei na pastelaria em frente à minha casa. Moderna.

quarta-feira, 31 de março de 2010

Ó diacho!

- Então mas conta-me lá, deste com aquilo? O marceneiro já me tinha avisado que era bastante difícil chegar lá.

- Qu’ideia!

- Ideia? Qual ideia? Talvez não tinhas nada em que pensar e o...

- Por mim... Duas cabeças nas nuvens! A olharem para baixo. Presas à força pelas suas sombras esquizofrénicas e a menina fascinada a apontar para cima.

- Hum?!

- Hum?

- Nada, esquece.

segunda-feira, 22 de março de 2010

Maria

Da esquerda para a direita: a minha mãe, a minha tia, a minha avó, o meu avô e o meu pai. À frente, as minhas primas que viraram costas no momento do flash. Gosto, especialmente, da pose da minha mãe, o cabelo castanho a roçar-lhe os ombros e as mãos dadas apoiadas na barriga metida num vestido muito largo cor de salmão.
No meio, como já disse, estava a minha avó, com as duas mãos assentes na cintura, impávida e inexpressiva, talvez porque quem tirava a foto era o meu tio Mário. Mas não vou falar nisso. Quero, sim, escrever a minha avó, a sua doçura, a sua disponibilidade, a sua «matrafonice». Chamava-me de velhaca e que delícia era ouvi-la dizer isso, com tanta prontidão, com tanto afinco.
Lembro-me claramente da casa onde morava quando morreu. A porta verde, a maçaneta dourada e uma longa escadaria até lá acima, e o espelho comprido e o bengaleiro. Na cozinha, fascinava-me ver todas aquelas panelas amolgadas, arrumadas umas em cima das outras, num móvel antigo, e imediatamente me vêem à cabeça os estendidos, polvilhados com açúcar e canela, que costumava fazer quando íamos ao Rossio.
Gosto de imaginar a minha avó a dar uma tareia ao vizinho com a vassoura. O rapaz pô-la em tribunal, claro, e ela apregoava que se o apanhasse outra vez que lhe dava uma tareia ainda maior. Não vejo os mortos tão claramente como vejo a minha avó e logo me chega ao nariz o cheiro da laca que costumava comprar mais barata na galinha gorda. Todas as manhãs, empestava os cabelos pintados de castanho e o penteado lá se mantinha firme, preparado para o reboliço do seu dia. Já tinha enviuvado quando aprendeu a ler e a escrever, carregando com tanto orgulho o dossier da escola, as canetas azuis e vermelhas, as letras do abecedário que escrevia repetindo.
Houve um dia em que a minha mãe recebeu uma chamada do meu avô. Pela voz parecia bastante assustado. Contou que nessa noite a minha avó tinha saído de casa, em camisa de dormir. Com a idade, a minha avó dera em sonâmbula e isso faz-me crer que o sonambulismo é, de alguma maneira, genético.

- Estou sim? Fala da farmácia? – perguntaram do outro lado da linha.

- Não, não. A senhora deve ter-se enganado no número – respondeu a minha avó, desligando o telefone.

(o telefone tocou outra vez)

- Estou? Fala da farmácia? – perguntaram de novo, ao que a minha avó respondeu: - Não, minha senhora, isto aqui não é nenhuma farmácia, mas o que não falta aqui são remédios – e desligou.

sagrado

Acredito francamente,
Devotamente até, no «sagrado pintor»
No santo, no sacro, no sacrossanto,
Se por sagrado se entender o amor

Porque isso de cobrar favores,
Ao pobre, ao analfabeto, ao cantador,
(som dos tambores)
Não tem em si qualquer valor

No fundo, bem lá no fundo,
De nada vale o espanto do orador
Que uma vez é atraiçoado, outra é o traidor
E a dor é tanta
E o sofrimento é tanto
Oh! se tanto

a primavera que entoou no seu regaço


O amante de segunda colou-se à página do livro e manchou as palavras de Dali, «do método que o ultrapassava então», quando Helena pulou da cama para dar um risco de coca à janela, em bicos de pés, encarrapitando-se no parapeito ascendente da vida. Aspirava com o olhar o voo das aves marítimas e voava ao seu lado sem roupas e os globos oculares gotejavam tal era a pressão do ar; pusera-se nevoeiro e de repente perdeu-as de vista e caiu amortecida pelo peso do seu regaço, das suas coxas, dos seus braços, do seu ventre.
Pôs o livro de parte, provavelmente na gaveta da mesa-de-cabeceira, junto aos tampões amorfos para os ouvidos, e pensava como era bom lambuzar-lhe o comprimento, as veias, as protuberâncias laterais, com a mesma voracidade com que uma criança chupa um calipo num fim de tarde escaldante.
Helena estava deitada com uma serpente que além de lhe ter dilatado as pupilas, fê-la atirar a realidade para trás das costas e levantar voo, concentrando-se no mistério genital inflamado, nas pequenas gotas que se transformaram numa capa húmida. Brincava com a parte inferior do objecto fálico, andava à roda com ele, apressava-o ou então incentivava-o a passear pela púbis, arbúscula de pêlo. Os grandes lábios, reflectidos no espelho, adensavam e projectavam-se para fora, como a boca faminta de um peixe do rio; e a fenda delicada expandiu-se em flor, flexível à grossura do objecto vibrante.
Toda aquela agitação fez os pés da cama ranger, mas só ela pareceu não ouvir o ruído no momento em que a sua vagina sofreu uma contracção mais forte e se agarrou ao pénis falso, como fazem as raízes em terreno fértil. Desta vez, preferiu não proferir palavras ordinárias, não gemer, não gritar. Deixou que o prazer viesse ao seu encontro. Esticou-se na cama, com um dos joelhos dobrados e o braço esquerdo debaixo da almofada e, ao olhar-se ao espelho, viu a silhueta de uma mulher-estátua envolvida em pó de gesso.
O que mais lhe dava gozo depois de atingir um orgasmo era ver o corpo desintumescer, a sensação de alívio que dava o mote a longos monólogos interiores, nos quais se juntavam o pai, os irmãos e o avô numa zaragata tão grande que logo fugia para o deserto, enterrando os braços e as pernas na areia quente, tornando-se enfim uma miragem.
Apanhou o livro do chão e esticou um risco veloz na página manchada que citava: Um dia, esvaziei completamente o interior de um bocado de pão, e que pensam que coloquei no seu interior? Um pequeno Buda de bronze, cuja superfície metálica enchi de pulgas mortas. Depois, fechei a abertura do pão com um pau, cimentei tudo... de modo a formar um todo homogéneo, como se fosse uma pequena urna, no cimo da qual escrevi: Compota de cavalo. O que significava isso?




domingo, 21 de março de 2010

Tarde de Verão

Amadas as belas loucas tardes de Domingo
Que passo com ela no cúbico
É linda ela!
E gosto de como a luz não entra
E de como a escuridão não sai
Improviso algumas piadas que a façam rir
Pois gosto que ela sorria...

Ou não?

Bela é a tarde de Verão.


Gordo

Caetano (exercício)



Uma mulher de pele escura atravessou-se à sua frente, exibindo um colorido turbante no cima da cabeça. Sentiu o seu aroma e desejou possuí-la, ali mesmo, no largo do Chiado. Decerto que os transeuntes não se importariam de ver os seus corpos cantar o fado ao amanhecer. Caetano andava sempre com o cabelo arranjadinho, as unhas castanhas do surro, o fecho das calças aberto e dele uma pila a apanhar ar fresco. Adorava vê-las passear e imaginar-lhes a cona. Camões não o recriminaria, era o seu fiel companheiro, estava ali para apoiá-lo nas horas do vinho. Além disso, a seu ver, todas eram esbeltas, fossem gordas, anafadas, magras, esqueléticas. Em todas era capaz de enfiar o seu besugo e desejava-o tanto, ansiava-o tanto... Mas coitado do Caetano... morreu virgem.




Desenho do Tagas "Agarra-me"
(http://palaciodeossos.blogspot.com/)

sexta-feira, 19 de março de 2010

A carta

«Como todos sabem NÃO GOSTO QUE ME INTERROMPAM durante um discurso que considero ser eloquente... Quando me enervo não consigo impedir que os meus sentimentos fiquem completamente a nu, passando desta forma a pertencer ao domínio público. E isso dos outros de fora conhecerem-me por dentro é para mim tão tenebroso que só de pensar nisso suo abundantemente das mãos, criando enormes poças de suor à minha volta.
Sendo uma mulher celibatária e tendo criado intencionalmente raízes numa solidão desmedida, espero que aqueles com quem me cruzo não me dirijam a palavra. Fico apavorada só de pensar nos transeuntes que ostentam um ponto preto no rosto como se fossem balões presos por corpos magros.


Teresa»

sem tónica

David observava atento o piano de cauda longa, os cortinados floridos, a vasta colecção literária na estante junto ao sofá. Mas foi o quadro, no qual duas mulheres-cavalo choravam desconsoladas a morte do filho-potro, personificada por um leito castanho suspenso no ar, que lhe captou a atenção.

- Comprei-o numa loja de antiguidades em Barcelona. Gostas? – perguntou o maestro.

- É invasivo. É quase doloroso.

- Sempre que olho para ele dá-me vontade de rir. As criaturas com longos bustos e pernas musculadas. Queres beber alguma coisa, antes de subirmos?

- Aceito um gin, com gelo e limão. Sem tónica.