segunda-feira, 22 de março de 2010

Maria

Da esquerda para a direita: a minha mãe, a minha tia, a minha avó, o meu avô e o meu pai. À frente, as minhas primas que viraram costas no momento do flash. Gosto, especialmente, da pose da minha mãe, o cabelo castanho a roçar-lhe os ombros e as mãos dadas apoiadas na barriga metida num vestido muito largo cor de salmão.
No meio, como já disse, estava a minha avó, com as duas mãos assentes na cintura, impávida e inexpressiva, talvez porque quem tirava a foto era o meu tio Mário. Mas não vou falar nisso. Quero, sim, escrever a minha avó, a sua doçura, a sua disponibilidade, a sua «matrafonice». Chamava-me de velhaca e que delícia era ouvi-la dizer isso, com tanta prontidão, com tanto afinco.
Lembro-me claramente da casa onde morava quando morreu. A porta verde, a maçaneta dourada e uma longa escadaria até lá acima, e o espelho comprido e o bengaleiro. Na cozinha, fascinava-me ver todas aquelas panelas amolgadas, arrumadas umas em cima das outras, num móvel antigo, e imediatamente me vêem à cabeça os estendidos, polvilhados com açúcar e canela, que costumava fazer quando íamos ao Rossio.
Gosto de imaginar a minha avó a dar uma tareia ao vizinho com a vassoura. O rapaz pô-la em tribunal, claro, e ela apregoava que se o apanhasse outra vez que lhe dava uma tareia ainda maior. Não vejo os mortos tão claramente como vejo a minha avó e logo me chega ao nariz o cheiro da laca que costumava comprar mais barata na galinha gorda. Todas as manhãs, empestava os cabelos pintados de castanho e o penteado lá se mantinha firme, preparado para o reboliço do seu dia. Já tinha enviuvado quando aprendeu a ler e a escrever, carregando com tanto orgulho o dossier da escola, as canetas azuis e vermelhas, as letras do abecedário que escrevia repetindo.
Houve um dia em que a minha mãe recebeu uma chamada do meu avô. Pela voz parecia bastante assustado. Contou que nessa noite a minha avó tinha saído de casa, em camisa de dormir. Com a idade, a minha avó dera em sonâmbula e isso faz-me crer que o sonambulismo é, de alguma maneira, genético.

- Estou sim? Fala da farmácia? – perguntaram do outro lado da linha.

- Não, não. A senhora deve ter-se enganado no número – respondeu a minha avó, desligando o telefone.

(o telefone tocou outra vez)

- Estou? Fala da farmácia? – perguntaram de novo, ao que a minha avó respondeu: - Não, minha senhora, isto aqui não é nenhuma farmácia, mas o que não falta aqui são remédios – e desligou.

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