segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Mescalina


Quatro Cavaleiros a pé

"Vão-se outra vez chegando à porta, com o jeito vagaroso de quem só pretende salvar a honra, e num relance desaparecem, corridos de vergonha, de medo, assustados com a sua própria coragem que não durou. (Ainda há pouco o café com leite não amargava, e a sanduíche não tinha gosto de palha). Entraram-me ali na loja quatro cavaleiros a pé, montados no esquecimento da sua ignorância, distraídos ou nunca sabedores de que nada é mais alto do que o homem, qualquer homem e em qualquer lugar, mesmo que neste se reserve o direito de admissão. Quatro cavaleiros que mais pareciam atados à cauda dos cavalos, como réus. Quatro cavaleiros que me deixaram olhar o fundo deste saguão fétido a que muita amorosa gente chama hierarquia, paz social, conformação de tantos com a sorte escolhida por poucos.
Faltam cavalos, amigos, faltam cavalos".

José Saramago, in "A Bagagem do Viajante"

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Dá-me vinho que a vida é nada.

Fernando Pessoa
É preciso certa coragem intelectual para um indivíduo reconhecer destemidamente que não passa de um farrapo humano, aborto sobrevivente, louco ainda por fora das fronteiras da internabilidade; mas é preciso ainda mais coragem de espírito para, reconhecido isso, criar uma adaptação perfeita ao seu destino, aceitar sem revolta, sem resignação, sem gesto algum, ou esboço de gesto, a maldição orgânica que a Natureza lhe impôs. Querer que não sofra com isso, é querer demais, porque não cabe no humano o aceitar o mal, vendo-o bem, e chamar-lhe bem; e, aceitando-o como mal, não é possível não sofrer com ele.

Bernardo Soares, in Livro do Desassossego
Sentes o peso do corpo preso
algures no espaço de uma luz verde intermitente.
Tens os braços baços e as pernas secas.

Bebes goles de vinho numa noite chata
e deitaste sozinha na calçada fria.
És agora o centro daquela rua verde.

Só estás tu e o vinho
acompanhados pelo tédio da vida
e pela loucura da morte.

Não és senão um peso de um corpo preso morto
inerte naquela calçada da rua
que naquele momento foi feliz.
Eras apenas tu, o vinho, o tédio e a loucura.
Tenho pena dos que sonham o provável, o legítimo e o próximo, do que dos que devaneiam sobre o longínquo e o estranho. Os que sonham grandemente, ou são doidos ou acreditam no que sonham e são felizes, ou são devaneadores simples, para quem o devaneio é uma música da alma, que os embala sem lhes dizer nada. Mas o que sonha o possível tem a possibilidade real da verdadeira desilusão. Não me pode pesar muito o ter deixado de ser imperador romano, mas pode doer-me o nunca sequer ter falado à costureira que, cerca das nove horas, volta sempre a esquina da direita. O sonho que nos promete o impossível já nisso nos priva dele, mas o sonho que nos promete o possível intromete-se com a própria vida e delega nela a sua solução. Um vive exclusivo e independente; o outro submisso das contigências do que acontece.

Por isso amo as paisagens impossíveis e as grandes áreas desertas dos plainos onde nunca estarei. As épocas históricas passadas são de pura maravilha, pois desde logo não posso supor que se realizarão comigo. Durmo quando sonho o que não há; vou despertar quando sonho o que pode haver.

Bernado Soares, in Livro do Desassossego

O relógio

O cheiro insuportável a naftalina
embrenha-se nos teus sentidos.
Reparas nas meias de lã
que te aquecem do frio que faz lá fora.

São 6:45. Estás sentada na cadeira de baloiço.
A tua preferida.
Inspiras. Expiras.
E continuas só. Giras à volta do passado.
Bilhete de ida sem volta.

Revoltas-te contra o relógio torto na parede da sala
que não pára. É a tirania do tempo contra ti.
Contra todos.

Impotente sorris. Mas a revolta surge do nada.
Esperas que o relógio pare...um dia.

Poesia de um mortal

Escorregas por uma espiral
de lâminas aguçadas.
Sangras. Sofres. Calas-te.
...continuas a escorregar...

Olhas para baixo. Escuro. Nada.
Apenas segundos seguidos de dor.
Silêncio cortante.
Paras no tempo e esperas por alguém que não chega.
Que não chegará. Que não existe.

E assim embarcas na viagem da tua vida
que preferes esquecer. Apagas. Esqueces.

Sentes arrepios de frio. Aqueces.
E desnorteada, morres.