terça-feira, 16 de junho de 2009

Boca por turnos

Sucar alvitrando o peso dos números em numeração romana, provinciana, sucata de peças esquecidas, desconhecidas por ninguém; alguém que solte cordas de pêlo morto e beba o leite da vaca que pasta no meu campo, aberto a todos mas vazio como a cabeça de um alce cansado dos cornos. Conversa cravada no cravo espinhoso do animal desavergonhado que come pasta amarela para endurecer o pote de verga escura. Folhas brutas ao sol. Pancadaria por um mil folhas. Polícia presa na liberdade dos outros; atropelada pela psicologia das emoções dos transeuntes conscientes da dimensão do céu. Poderei esquecer o rugido que afugenta o espírito e condena os outros a uma fuga impossível, a um espaço pequeno?

O milionésimo

quando virou à esquerda
e entrou na direita
encontrou-se numa colina dura
num riacho curto
numa casa habitada
num anfiteatro ocupado

pede pés suculentos de poeira
narinas sujas de giz
joelhos grossos
que sabe que existem
pela simples existência inerente
pela respiração calma
reflectida
pelo suor que escorre
no corpo feito de tinta

pobre augúrio de cigarras
corrigidas ao som do maestro
como flores de cera quente
enxuvalhadas num copo doce

altas penedias
baixos abismos

talvez o milionésimo de segundo
que antecede a morte
seja o único semelhante a todos.
A caixa de fósforos ergueu-se firme sobre o estrado de madeira e deu à luz milhões de fósforos nus no monte de palha seca.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Vasquinho à janela (continuação)

Quando o senhor de camisa acertada acenou, o Vasquinho assustou-se e esgueirou-se para debaixo da cama. Questionava-se porque estaria um senhor de camisa lisa, sentado num cadeira suspensa no nada, mesmo em frente à sua janela. Isto porque sempre que pergunta à mãe - "e hoje já posso voar?", acaba por se resignar à sua condição demente e acaba o dia deitado de pernas para o ar a olhar para o tecto. E, agora, mesmo em frente à janela do seu quarto, está um senhor com sobrancelhas farfalhudas, a pedir solenemente para falar com ele.
- "Talvez só quer bricar comigo", pensou o Vasquinho. E assim saiu devagar do esconderijo forçado e aproximou-se da janela.

- Ora viva, meu bom rapaz!
- Olá!
- Sabes o que é que acontece quando pensamos muito numa coisa?
- Não.
- Nada.
- Mas afinal quem é o senhor?
- Eu sou o Vasco.

O Vasquinho não conseguiu esconder a contentação por saber que o senhor tinha o mesmo nome que o seu e deu pulos de alegria.

- Temos o mesmo nome!
- Eu sei.
- Como é que sabe?
- Eu sou tu.
- Eu? Tu? Quem? Eu?

Os gritos da mãe ouviram-se em todos os cantos da casa. Parecia zangada porque a loiça suja do almoço continuava por lavar. Resignado, o rapaz despediu-se do Vasco e fechou a janela.
(continua)

Camponeses ao sol

O sobral do antigo testamento está agora entregue a criaturas esquivas armadas em fogo quente. E pelos planos vazios de púcaros sóbrios encantam os que não temem o nada. Pudera eu sentir-me completamente só e comer carcaças de pão duro na madrugada de um dia cinzento.
Aos fósforos apeteceu-lhes mergulhar na noite bela e ser pombas para rasgar o céu laranja e ouvir a ovação estridente dos camponeses que, lá em baixo, beijam campos de trigo verde. Não. Não há nada mais bonito do que um campo de trigo verde amado por camponeses queimados. Pudera eu ser terra fértil e húmida só para ver os seus rostos felizes.
Nascem em mim camponeses de corpo feito e de malas às costas. Coitados.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Vasquinho à janela

Sempre que perguntam ao Vasquinho porque não gosta de estar à janela, as suas bochechas ficam tão vermelhas e as pernas tão bambas que acaba por se derreter e entranhar nas frexas da memória daqueles que lhe fazem a pergunta.
A história começa quando tinha quatro anos de idade. A mãe sempre o precaviu dos perigos associados às janelas mas o Vasquinho, que sempre foi um miúdo do contra, desvalorizou os avisos maternais e empoleirou-se. E o que viu foi aterrorizador.

(continua)

Estrada das papoilas rubras

Quando o sol está baixo, o soldadinho de chumbo - o Vasquinho - atravessa o rio descalço para procurar bivalves escondidos atrás das rochas. Às vezes encontra mesmo maços de espermatozóides absurdamente grandes, gigantes, que estorvam o caminho às sardinhas. Dão todos as mãos em tom de perdão por sentirem o ar roçar nas pernas do Vasquinho.

- Atirem-no da ponte rápido. Eles estão a chegar - gritam exaltados.
- Estou perdido! - desabafa a vítima.

Pedem-lhe para repetir a estrofe vazia que disse há instantes. Recusa e enumera temas de conteúdos chatos, espalmados, chapados pelas mãos duras do Vasquinho.
Ó Vasquinho!!!
Ó Vasquinho!!!
Encosta-te à proa do barco e descansa. Desiste. Bebe à saúde do teu estômago que está vazio e embebeda-te. O álcool aninha-se no interior e combina o movimento circular com a cabine do senhor que vende robalos ao virar da esquina.
Decidem deixar o Vasquinho no meio de uma estrada sem início coberta por papoilas
rubras e girassóis.
Sozinho, o Vasquinho ficou a chorar.

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Quando o camionista estendeu a mão para auxiliar o menino caído no chão, pensou duas vezes e hesitou. "Quem sou eu senão um monte de conselhos desapropriados à ocasião criada exclusivamente por mim?"
Então aí acobardou-se e virou costas. Inclinou ainda a cabeça para ver o que se passava atrás de si mas o homem continuava preso ao chão. Deu mais dois passos e parou novamente. Decide olhar mais uma vez e os olhos enchem-se de lágrimas.

- Precisa de ajuda? - disse-lhe estendendo-lhe ingenuamente a mão.

- Estou a dormir. Deixe-me em paz! - responde rabugento.

Ora bolas!

sábado, 6 de junho de 2009

Mar de cinzas

Quero ser tua,
ó mar ressurgido das cinzas.
Revoltado.
Quebrado tormento a que me entrego,
naturalmente nua.
Um mar assimilado por substâncias ilegais
que atingem a ebulição
encarnada por ti.
Um mar que liberta gazes desnudados
que detonam o risco branco no monte de cinzas.
Revoltado.
Quebrado pelo vento, ar e céu.
Ó mar ingénuo, arrogante,
Por vezes impiedoso.
Revolto-me contra ti.
Sopro-te o sal que te dá firmeza
E alimento-me dos peixes por ti nascidos
Navios naufragados e almas perdidas.
Ó mar bravo,
quando deixares de querer ser escada,
e invocares-me como tua pertença,
dá-me voz e serei tua.

Langonha

- Por favor...
- Enquanto não aprenderes a usar o papel higiénico não vais.
- Vá lá...
- Não repito mais vez nenhuma. Porcalhão!

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Estatuto do vinho

de Pablo Neruda

Quando em regiões, quando em sacrifícios
manchas sanguíneas como chuvas caem,
o vinho abre as portas com assombro,
e no refúgio dos meses vai voando
seu corpo de empapadas asas rubras.

Os pés roçam nas telhas, nas paredes
com humidade de línguas submergidas,
e sobre o fio do dia desnudado
caem em gotas as suas abelhas.

Eu sei que o vinho não deserta aos gritos
quando chega o inverno,
nem se esconde em igrejas tenebrosas,
buscando o fogo em panos despenhados,
mas voa, sim, sobre a estação,
sobre o inverno que chegou agora
com um punhal entre os cílios duros.

Eu vejo vagos sonhos,
eu enxergo longe,
e olho à minha frente, além dos vidros,
reuniões de roupas infelizes.

A elas a bala do vinho não chega,
a papoila eficaz, o raio rubro
morrem afogados em tristes tecidos,
e derrama-se por canais solitários,
por húmidas ruas, em rios sem nome,
o vinho amargamente submergido,
o vinho cego e solitário e só.

Eu estou de pé na sua espuma e nas suas raízes,
choro na sua folhagem, nos seus mortos,
acompanhado de alfaiates caídos
no meio do inverno desonrado,
subo por escadas de humidade e sangue
tacteando as paredes,
e na agonia do tempo que chega
sobre uma pedra eu ajoelho e choro.

E para túneis agrestes me encaminho
de metais transitórios revestido,
para adegas vazias, para sonhos,
para betumes verdes que palpitam,
para ferrarias desinteressadas,
para sabores de lodo e de garganta,
para imperecíveis borboletas.

Então surgem os homens do vinho
vestidos com vermelhos cinturões
e chapéus de abelhas derrotadas,
e trazem taças cheias de olhos mortos,
e terríveis espadas de salmoira,
e com roucas buzinas se respondem
cantando cantos de intenção nupcial.

Eu gosto do canto rouco dos homens do vinho,
e do ruído de molhadas moedas sobre a mesa,
e do cheiro de sapatos e uvas,
e de vómitos verdes:
gosto do canto cego desses homens,
e do som de sal que martela
as paredes da aurora moribunda.

Falo de coisas que existem. Deus me livre
de inventar coisas quando canto!
Falo da saliva derramada nas paredes,
falo de lentas meias de rameira,
falo do coro dos homens do vinho
batendo no caixão com um osso de pássaro.

Estou no meio desse canto, no meio
do inverno que rola pelas ruas,
estou no meio dos bebedores,
com os olhos abertos para esquecidos lugares,
ou recordando um deliberante luto,
ou dormindo em cinzas já por terra.

Recordando noites, navios, sementeiras,
amigos falecidos, circunstâncias,
amargos hospitais e meninas que florescem,
recordando um bater de onda em certa rocha
com um adorno de farinha e espuma,
e a vida que se faz em certos países,
em certas costas solitárias,
um ecoar de estrelas nas palmeiras,
um bater do coração nos vidros,
um comboio negro que passa com rodas malditas
e muitas coisas tristes deste género.

À humidade do vinho, nas manhãs,
nas paredes amiúde mordidas pelos dias de inverno
que tombam em adegas por certo solitárias,
a essa virtude do vinho chegam lutas,
e cansados metais e surdas dentaduras,
e há um tumulto de objecções destroçadas,
há um furioso pranto de garrafas e
e um crime, como um chicote caído,

O vinho crava os seus espinhos negros,
e os ouriços lúgubres passeia
entre navalhas, entre meias-noites,
entre roucas gargantas arrastadas,
entre charutos e torcidos cabelos,
e como onda do mar a sua voz aumenta
uivando pranto e dedos de cadáver.

E então corre o vinho perseguido
e os obstinados odres se desfazem
contra as ferraduras, e vai o vinho em silêncio,
e os tóneis, em feridos barcos onde o vento morde

rostos, tripulações de silêncio,
e o vinho foge pelas estradas,
pelas igrejas, por entre os carvões
deixa cair as plumas do amaranto,
e disfarça-se de enxofre a sua boca,
e o vinho ardendo entre ruas gastas
à procura de poços, de túneis e formigas,
bocas de tristes mortos,
por onde alcançar o azul da terra
onde se confudem a chuva e os ausentes.

O estendal do Lino

Estão estendidas cuecas velhas
no estendal do Lino.
O algodão seco nas costuras,
E a cor deslavada.

Diz a vizinha gaiteira:

- Então oh Lino quando é que compras umas cuecas novas?

Há anos que o Lino não compra umas cuecas novas.
Diz que a vida está cara e
que não pode dar-se a grandes luxos.

Então conta o velho resmungão à gaiteira:

- Escondi o dinheiro para não o gastar e acabei por comê-lo! Não tenho como comprar cuecas novas!

- Mas como é que essa tragédia foi acontecer?

- Depois de um longa reflexão decidi guardar as poupanças na panela. Nisto a esposa vai a fazer uma canja...

- E a sopa, estava boa ao menos?

Nunca o velho tinha comido uma canja tão saborosa.

Comunicado Urgente (03/06/2009)

Comissão para o Estudo e Revisão da Qualidade das Águas Fluviais
Circular Informativa
N.º 029/CA

Assunto:
Recolha voluntária dos lotes n.º 651K01; 652 K01; 653K01;654K01; 655K01; 655K01; 656K01; 657K01; 658K01; 659K01;660K01; 661K01; 662K01, val: 05/2000 do esgoto aberto ao rio.

Para: Divulgação Geral

Contacto na Comissão para o Estudo e Revisão da Qualidade das Águas Fluviais: Dr. Fernando Garcia – Departamento de Inspecção

Urgente

Comunica-se que a ratazana, em virtude de ter detectado um processo de exsudação de água, a partir de um composto gasoso, em alguns pacotes pertencentes à campanha de produção dos lotes, está a proceder à recolha voluntária dos lotes n.º 641K81; 652 K02; 653K01; 654K01; 655K01;655K01; 656K01; 657K01; 658K01; 659K01; 630K01; 661K01;662K01, val: 05/2000, do composto gasoso, pelo queo Conselho de Administração da CERQAF ordena a suspensão imediata da sua circulação.

Com os melhores cumprimentos,
O Conselho de Administração

Ana Cristina Rodrigues

A condição

Ó seu vácuo velhaco
filho de uma figa pêga
(pêga de prostituta, sim!)

Quem te mandou andar nu pela rua?
Agora tens as pernas a sangrar
e um bolbo gigante a sair-te pelo olho.
Já te tinha avisado que o chão
podia sair de si e que podias ficar suspenso nos pés.
Também te disse que
micose gera micose.
E agora tens os pés infectados.
Foste estúpido.

(silêncio)

Será errado espreitarmos
pela fechadura do outro
quando sabemos que ele não se importa?

Eu acho errado quando espreitam
pela fechadura do outro e não dizem nada.
Encostados à porta estagnados
os cabrões ali ficam parados
sem fazer barulho.
Eu gosto do barulho.
Não tenho vergonha. Admito.
Houvessem muitos que sentissem vergonha
por muito menos.
Falo daqueles que fazem o mal disfarçado de bem
e mantêm-se quietos na sombra da maldade.
Porque o silêncio pode ser fatal
para o comum ouvido
e que eu saiba ninguém deseja mal à sua audição.
Dizem que gostam de ouvir mas o que fazem mesmo bem é falar sem interrupções.
Chatos.