quarta-feira, 3 de junho de 2009

Estatuto do vinho

de Pablo Neruda

Quando em regiões, quando em sacrifícios
manchas sanguíneas como chuvas caem,
o vinho abre as portas com assombro,
e no refúgio dos meses vai voando
seu corpo de empapadas asas rubras.

Os pés roçam nas telhas, nas paredes
com humidade de línguas submergidas,
e sobre o fio do dia desnudado
caem em gotas as suas abelhas.

Eu sei que o vinho não deserta aos gritos
quando chega o inverno,
nem se esconde em igrejas tenebrosas,
buscando o fogo em panos despenhados,
mas voa, sim, sobre a estação,
sobre o inverno que chegou agora
com um punhal entre os cílios duros.

Eu vejo vagos sonhos,
eu enxergo longe,
e olho à minha frente, além dos vidros,
reuniões de roupas infelizes.

A elas a bala do vinho não chega,
a papoila eficaz, o raio rubro
morrem afogados em tristes tecidos,
e derrama-se por canais solitários,
por húmidas ruas, em rios sem nome,
o vinho amargamente submergido,
o vinho cego e solitário e só.

Eu estou de pé na sua espuma e nas suas raízes,
choro na sua folhagem, nos seus mortos,
acompanhado de alfaiates caídos
no meio do inverno desonrado,
subo por escadas de humidade e sangue
tacteando as paredes,
e na agonia do tempo que chega
sobre uma pedra eu ajoelho e choro.

E para túneis agrestes me encaminho
de metais transitórios revestido,
para adegas vazias, para sonhos,
para betumes verdes que palpitam,
para ferrarias desinteressadas,
para sabores de lodo e de garganta,
para imperecíveis borboletas.

Então surgem os homens do vinho
vestidos com vermelhos cinturões
e chapéus de abelhas derrotadas,
e trazem taças cheias de olhos mortos,
e terríveis espadas de salmoira,
e com roucas buzinas se respondem
cantando cantos de intenção nupcial.

Eu gosto do canto rouco dos homens do vinho,
e do ruído de molhadas moedas sobre a mesa,
e do cheiro de sapatos e uvas,
e de vómitos verdes:
gosto do canto cego desses homens,
e do som de sal que martela
as paredes da aurora moribunda.

Falo de coisas que existem. Deus me livre
de inventar coisas quando canto!
Falo da saliva derramada nas paredes,
falo de lentas meias de rameira,
falo do coro dos homens do vinho
batendo no caixão com um osso de pássaro.

Estou no meio desse canto, no meio
do inverno que rola pelas ruas,
estou no meio dos bebedores,
com os olhos abertos para esquecidos lugares,
ou recordando um deliberante luto,
ou dormindo em cinzas já por terra.

Recordando noites, navios, sementeiras,
amigos falecidos, circunstâncias,
amargos hospitais e meninas que florescem,
recordando um bater de onda em certa rocha
com um adorno de farinha e espuma,
e a vida que se faz em certos países,
em certas costas solitárias,
um ecoar de estrelas nas palmeiras,
um bater do coração nos vidros,
um comboio negro que passa com rodas malditas
e muitas coisas tristes deste género.

À humidade do vinho, nas manhãs,
nas paredes amiúde mordidas pelos dias de inverno
que tombam em adegas por certo solitárias,
a essa virtude do vinho chegam lutas,
e cansados metais e surdas dentaduras,
e há um tumulto de objecções destroçadas,
há um furioso pranto de garrafas e
e um crime, como um chicote caído,

O vinho crava os seus espinhos negros,
e os ouriços lúgubres passeia
entre navalhas, entre meias-noites,
entre roucas gargantas arrastadas,
entre charutos e torcidos cabelos,
e como onda do mar a sua voz aumenta
uivando pranto e dedos de cadáver.

E então corre o vinho perseguido
e os obstinados odres se desfazem
contra as ferraduras, e vai o vinho em silêncio,
e os tóneis, em feridos barcos onde o vento morde

rostos, tripulações de silêncio,
e o vinho foge pelas estradas,
pelas igrejas, por entre os carvões
deixa cair as plumas do amaranto,
e disfarça-se de enxofre a sua boca,
e o vinho ardendo entre ruas gastas
à procura de poços, de túneis e formigas,
bocas de tristes mortos,
por onde alcançar o azul da terra
onde se confudem a chuva e os ausentes.

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