quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Era uma vez o reflexo de um espelho que, todos os dias, mirava a sua pele clara, os seus olhos castanhos e os seus lábios carnudos. Ficava horas em frente ao espelho; conversava com ele, dançava para ele e só falava dele, do seu reflexo.
O espelho, embelezado por uma clássica moldura em ferro, estava encostado a uma parede fria, pouco conversadora. Todos os dias, mais do que uma vez, perguntava ao reflexo “E eu? Como sou?” mas, todos os dias, o reflexo não o ouvia ou fingia que não ouvia. Sentia-se só e desprezado.
Um dia, o espelho enervou-se. Embaciou-se de raiva e afugentou o reflexo reflectido em si, bem como a sua pele macia, os seus olhos castanhos e os seus lábios carnudos.
Apesar de viver no lado do não-reflexo, o espelho queria acreditar que era mais do que um objecto sem corpo. Imaginava-se espadaúdo e musculado, com uma aparência própria, só sua.
Até ao dia em que o espelho arranjou a solução para o seu problema. Mesmo sabendo que o frigorífico, além de glutão, era grosseiro com toda a mobília da casa decidiu arriscar. Pediu-lhe delicadamente para andar dois passos para a sua direita. E assim que se aproximou, contrariado, o espelho apareceu reflectido na superfície branca do frigorífico. Não queria acreditar no que vira. Era impossível! Só podia! Estava virado do avesso, com uma peúga na cabeça e cabelos pretos nos pés. Cerrou os olhos, tombou para trás e nunca mais se levantou.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

meio-cadáver

enfiou a malha borbotada
comprimindo o arrepio
mas o acto não abafou
o autêntico desafio.

pois o lábio entorpecido
paralisado e amortecido.
foi incapaz de envergonhar
aquele frio abrutecido.

o tempo não cessava
e a paciência da velha açulava
“mas que raio vem a ser isto?”
perguntou exaltada.

enfiou outra malha
de cor negra, desarranjada
mas a mão enregelada
correu o corpo, agitada.

“mas que merda vem a ser esta?”
gritou para o espelho, embaciado,
e o espelho nada fez
senão mostrar-se desinteressado.

eu que olho para a velha
aflige-me a sua dormência
basta a chaga amargurada
chega o estado de latência.

o dipsomaníaco

vi aquele corpo letárgico
dar voz a um títere sôfrego, ascético
e sulquei-lhe a alma saqueada.

nefando.

ao meditar a excrescência do folículo
estranhei o seu candor crispado
e assente no céu como um safado,
ele - o dipsomaníaco - foi apedrejado
e no cume do montículo dilapidado.

nefando.

andava enfadado com o líquido desfeito.
decomposto pela ociosidade. afeito.
e assim que expeliu o ar, despeito
subiu os degraus do cadafalso. malfeito.

nefando.

e assim foi enforcado, insípido
perdido num pranto dantesco.
que desmedido sacrilégio frígido
fez sucumbir o nosso dipsomaníaco burlesco

O relógio na outra margem do rio

Era uma vez três irmãs que viviam numa casa muito pequena. A mais velha, Luciana, era muito alta e estava sempre a bater com a cabeça no tecto. Diana, a irmã do meio, tinha os pés muito grandes e, todos os dias, tropeçava nos cantos dos móveis da casa. E Belinha, a mais nova, via muito mal e nem as grossas lentes dos óculos a impediam de perder-se pela casa.
Já estavam deitadas quando alguém bateu à porta. Truz, truz! – ecoou pela casa. Era de noite e chovia a potes. Olharam umas para as outras, apavoradas, e emudeceram, pois sabiam que a noite pertence aos gatos pardos. Mas as pancadas na porta não pararam. Então, pé ante pé, Diana levantou-se da cama e afastou devagarinho a cortina florida da janela.

- É um anão! Parece estar cheio de frio, coitadinho. Vamos abrir-lhe a porta. De certo que não nos fará mal – disse.

- Nem pensar! Não são horas para receber visitas. Já é tarde! – contestou a mais velha.

- Mas e se estiver a precisar de ajuda? Devíamos ver o que se passa – convenceu Diana.

E assim foi... A Luciana, ao levantar-se, bateu com a cabeça no tecto e ganhou mais um galo; A Diana tropeçou no tapete e caiu em cima da estante dos livros; e a Belinha estatelou-se contra a porta do quarto, ficando para trás.

- Quem é? – perguntaram, com a voz trémula.

- Estou perdido e tenho muito frio, por favor, ajudem-me! – ouviu-se do lado de fora.

Abriram a porta, com cuidado, mas as bochechas coradas do anão logo enterneceram as três irmãs que o convidaram a entrar. Estava vestido com um enorme macacão azul e uma carapuça grená que parecia um cogumelo.

- Para agradecer a vossa hospitalidade, vou contar-vos um segredo. Mas têm que prometer que não contam a ninguém, senão... – disse o anão, aquecendo-se à lareira.

- Conta, conta, anão! – exclamaram as três irmãs em uníssono.

- Há muitos, muitos anos atrás, o Grande Mago dos Sonhos lançou um feitiço no cimo destas montanhas.

- Um feitiço? - perguntou Diana, com uma expressão sobranceira.

- Criou um relógio capaz de transformar os sonhos em realidade. Ainda hoje permanece escondido no tronco oco de uma árvore. Está aqui o mapa – tirando uma folha amachucada do bolso.

As três irmãs ficaram em êxtase. No dia seguinte, ainda o sol não tinha nascido, rumaram até ao cimo das montanhas para procurar o relógio.

- Olha, olha, ali ao fundo... Está ali a árvore que o anão falou!!! – gritou a Luciana, apontando para um tronco seco na outra margem do rio.

- E agora? No mapa não existe nenhum rio. O anão tramou-nos! – clamou Belinha.

O ânimo das três irmãs esmoreceu. Mas Diana logo teve uma ideia capaz de as levar até à outra margem.

- Estão a ver aquele sapo gigante? De certeza que aceitará ajudar-nos! – exclamou, aproximando-se devagarinho do animal que dormia uma sesta.

E assim foi... O sapo aceitou o pedido das três irmãs e, uma de cada vez, saltaram para as costas do sapo e atravessaram o rio. Descobriram, finalmente, o relógio mágico, banhado em ouro, e fizeram tal e qual como o anão lhes tinha dito. Rodaram os ponteiros retorcidos e enferrujados e marcaram as três horas. A Luciana pediu para ser mais baixa, a Diana pediu para ter os pés mais pequenos e a Belinha pediu para ver melhor.
Quando regressaram a casa, as três irmãs espantaram-se ao ver que saia fumo da chaminé. “Está alguém em casa”, pensaram e quando abriram a porta viram o anão de pijama refastelado no sofá da sala.

- Mas, mas... Conseguiram atravessar o rio? Encontraram o relógio? – perguntou, surpreso.

- Devias ter vergonha! Não és mais bem-vindo nesta casa! – apregoou Diana, enxotando o anão para fora com uma vassoura.

E nunca mais ouviram falar no anão charlatão que não acreditou na força e perseverança das três irmãs.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Lontra

Quiseram comer-me a cartilagem, aqueles monges safados que no outro dia se atravessaram no meu caminho! Ai se eu os apanho! Visitei o mar nessa manhã. Sentei-me na areia e abri os braços à lontra. Gorda e com um herpes no lábio. Quando olhei para trás e vi a minha cidade dentro de um cortiço em forma de estômago assustei-me. Parecia apertada e ofereci-lhe um sopro. Agradeceu-me e virou sapo e fugiu. Quando voltei, o mar tinha iniciado viagem. Ao longe gritava por mim, soltando vagas tristes. Mas ai aqueles monges!!! Sacanas dos velhos que me quiseram trincar a cartilagem! E os tijolos que caíram no prédio em frente? Ninguém os acode e tenho pena porque eram bons tijolos. Mas alguém faz alguma coisa por isso? Naquela manhã, cruzei-me com um ao virar da esquina. Pareceu-me material de qualidade, um bom chefe de família. Não me falou... é verdade... mas bolas!!! Era um tijolo!!! Não me lembro de acordar nessa manhã, nem de adormecer no dia antes. Mas lembro-me que nessa manhã me esqueci do casaco em casa e como estava frio resolvi pedir o pêlo de um gato vadio emprestado. Mas só de pensar nos sacanas dos monges sinto um arrepio na espinha! Nessa manhã, cacei um camelo aprumado que passeava uma boina turca na cabeça. Os seus cascos maçudos ainda me fizeram mossa na cabeça. Só não me lembro como essa manhã acabou...

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Desgraçado

desgraçado do que viu o porto
de sangue amorfo
beber-lhe o corpo desenxabido.
vivido e repetido pelo
círculo desgraçado que só é ciclo
quando a linha de volta beija
a reviravolta do tempo
que não volta sem se repetir
vivendo.
e o desgraçado,
que nasceu do chão
calçado com botas de cão,
a Ele – ao Tempo frustrado –
o desgraçado virou-lhe as costas
e nunca mais olhou para trás.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

o Texugo e o velho Cucu

O Texugo foi com a mulher à floresta encarnada procurar mantimentos para suportar o longo e penoso Inverno. Encontraram ervilhas, feijões verdes e sementes de girassol que deram para encher oito sacos de verga. Mas, sem darem por isso, o sol despedira-se ternamente dos vales, florestas e rios.

- Estou cansada e já anoiteceu. Por favor, deixa as ervilhas e vamos para casa - pediu a mulher do Texugo.

- Mas ainda não apanhámos o suficiente para dar ao velho Cucu. Vai para casa que eu continuo a trabalhar.

E assim foi. O sol deu lugar à lua, que deu lugar ao sol, que deu lugar à lua novamente. Dois dias passaram e o Texugo conseguiu recolher alimento suficiente para suportar o frio e dar ao Cucu que vive na árvore mais alta do bosque azul.

- Aqui tens as vinte sacas de ervilhas e sementes de girassol que prometi – gritou o Texugo.

- Demoraste muito tempo. Pensava que já não vinhas – disse o Cucu, arrogante.

- Eu nunca desisto. Sou persistente. Onde está a saliva de andorinha? A minha mulher está muito doente.

- És mesmo burro! Acreditaste mesmo que a saliva de andorinha cura todos os males? – falou o Cuco, largando uma enorme gargalhada que ecoou por toda a floresta.

Quando se apercebeu que tinha sido enganado pelo espertalhão do Cucu, o Texugo ficou bastante zangado e saiu da floresta a praguejar para os arvoredos.

- O Cucu vai-se arrepender do que fez – exclamou o Texugo ao entrar em casa.

- O que é que se passou? – disse a mulher com a voz limpa e segura.

- Estás melhor? Não acredito...

- Falei com o Peru que me receitou chá de erva preta e melhorei. Mas o que é que o velho Cucu aprontou desta vez?

- A história da saliva de andorinha...era mentira... Magano do Cucu.

No dia seguinte, o Texugo foi ter novamente com o Cucu.

- Ó Cucu? Estás por casa?

- Ora, ora, quem é ele... Pensei que estivesses chateado comigo. O que te traz por cá?

- Eu não sou de guardar rancor. Achei umas sementes deliciosas perto do rio. Queres provar?

- Hum... que interessante! – disse o Cucu pondo uma semente à boca - Sabe a pimento vermelho. Que delícia!

Passou-se um mês e o Texugo voltou à árvore mais alta do bosque e chamou pelo velho Cucu. Silêncio. Voltou a chamar mas nada, apenas silêncio. Quando se virou para retomar caminho, o Texugo assustou-se com a presença intimidatória do Cucu que gesticulava com as asas e picava encolerizado o tronco da sua árvore.

- Perdeste o pio, não foi? Pois é para aprenderes a não gozar com o sofrimento dos outros e a procurares o teu próprio alimento.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

A "descartabilidade" humana

Sinto-me usada, suja, conspurcada. Aquele que nunca se sentiu descartável que ponha o dedo no ar. Eu quero ver isso. Estou cansada. Estou profundamente magoada com os carris do comboio que se atravessaram no meu caminho e não me pisaram, os desgraçados. Sou incapaz. Peço aos outros que copulem mas ninguém o faz. Ninguém me ouve. A “descartabilidade” humana afecta-me mas não me mata. Mas afecta e muito. Não vale a pena fazer interrogações quando já conhecemos as respostas de trás para a frente e de frente para trás. Levar-me pela mornidão do Outono, pelas folhas carpidas, cujo queixume ninguém quer ouvir. Ouvidos moucos, caros semblantes de agonia, de tormentos risos emurchecidos ao sol.
Repito: sinto-me descartável, usada, suja, conspurcada.

A PRAGA

Tudo funcionava como devia funcionar – a chamada ordem das coisas, mutável, assente em terras movediças. Ora a vizinha arcava com as desculpas dos condóminos sobre o cheiro a mijo na entrada do prédio, ora o calceteiro brigava com o funcionário do Estado por este ter estacionado a viatura em cima do passeio em obras, ora o turista inglês, de mala às costas e mapa na mão, pedia indicações sobre o castelo de São Jorge.
Tudo funcionava como devia funcionar até que “o que comeu as duas Marias”, o rapaz das oficinas experimentais, foi mordido por uma cobra, mesmo ao largo do Rossio. O caso era inédito e dava pano para mangas. Não há memória de alguém ser atacado por uma cobra mesmo no coração de Lisboa. Mas, ao que parece, as coisas mudaram.

A história das duas Marias

Num dia quente, banal, igual a todos os outros, o rapaz passeava pelo Rossio de braço dado com as duas Marias, moçoilas robustas e rosadinhas, órfãs de mãe. Não se contentou com uma. Fez o que pôde para levar as duas a passear. E lá foram os três pavoneando-se pela cidade, ele de papo erguido e barriga encolhida, dentro de um pomposo fato castanho que pertencia ao seu pai; elas exibindo os bustos acentuados pelo decote dos vestidos colados ao corpo e rindo alto para chamar a atenção dos que caminhavam na rua. Mas o encontro não acabou bem, pelo menos para o rapaz. Decidiram parar para tomar café e conversar. Ao entrarem na pastelaria, todos os olhos caíram em cima das duas Marias, esplendorosos arquétipos de feminilidade. O empregado que os atendeu tremia ao anotar os pedidos no velho bloco e elas, as Marias, encantaram-se com o jeito desajeitado daquele garoto, vermelho que estava. O rapaz, claro, percebeu tudo. “Quem são elas para me desprezarem desta maneira?”, cogitou, indignado. E, sem meias medidas, levantou-se bruscamente da cadeira, entornando propositadamente os galões em cima dos vestidos das meninas, que se mostraram demasiado atrevidas para o seu gosto. Abandonou o café e nunca mais lhes dirigiu palavra.

Triste epílogo

O rapaz estava pálido e imobilizado. O veneno dispersava rapidamente pelo corpo, entorpecendo-lhe os músculos e provocando-lhe espasmos respiratórios. Assim que chegou ao hospital, foi imediatamente assistido por uma equipa técnica altamente qualificada no assunto. Tarde demais. O adversário adiantara-se ao roer-lhe as entranhas e o rapaz pereceu estendido na maca do hospital. Triste epílogo.
No dia seguinte, este acontecimento estranho foi relatado até à exaustão nos meios de comunicação (chupadores). “Víbora-cornuda ataca jovem em plena Lisboa”, fazia os cabeçalhos dos jornais. Na televisão, a ministra da Saúde emitia o alerta com uma expressão séria e preocupada, estimulando o pânico entre os lisboetas.
Carmo estava na cozinha quando o Manuel chegou a casa, já passava das dez da noite.

- Porque é que não me avisaste que ias chegar tarde? Estava tão preocupada contigo, homem. Ouviste as notícias?

- Qual delas? Há tantas por aí... Aquela do homem que morreu electrocutado ao tentar roubar fios de cobre? Ou aquela em que desapareceu a tartaruga do chafariz da aldeia de Cima? Para mim, esta é a melhor!!!

- Ai homem, homem, como é que te podes estar a rir numa altura destas? Anda uma cobra venosa em Lisboa, um rapaz já morreu e tudo.

- Isso é só para nos preocuparem, não vês logo? Acalma-te mas é e serve-me o jantar. Estou esfomeado! (Ao abrir a panela...) Caril de frango com quiabos? Outra vez Carmo? Já deito isto pelos olhos, francamente...

- Cala-te e come. Já não te posso ouvir com essa conversa, chiça!
Botas rijas de morder


Carmo acordou sobressaltada a meio da noite. Olhou para o lado e a expressão serena de Manuel acalmou-a por instantes. Ao entrar na cozinha, o suor escorre-lhe pelo rosto e as mãos tremem ao pegar no copo de água. Recorda-se apenas de partes desfocadas do sonho, paradas no tempo. A casa sem mobília, sem luz ao fundo do corredor. O ritmo dos guizos incandescentes ao longe e uma sensação peçonhenta na pele. Grunhiam-lhe ao ouvido mas parecia surda.

- O que estás a fazer acordada a estas horas? Desde que ouviste aquela notícia na televisão que estás assim – disse Manuel, entrando de rompante na cozinha.

- Às vezes ponho-me a pensar o que vai ser de nós. As contas para pagar, a tua doença e agora esta história das cobras e das botas. Só de pensar nisso fica toda arrepiada.
- Deixa-te de disparates. Não tens motivos para estar assim. Quanto às botas, não te preocupes, já tenho tudo controlado. Amanhã cedo resolvo esse assunto.

- Fico mais descansada.

- És uma mulher forte, desembaraçada, e é por isso que te admiro tanto. O que tu precisas é de uma boa noite de sono. Vá, vê se dormes.

- - -

O eléctrico amarelo com destino à Ajuda inicia viagem. O som das rodas a roçar nos carris encoraja os putos que se empoleiram na parte traseira do transporte público. Os lugares sentados estão todos ocupados e Manuel encosta-se junto à porta de saída. O cheiro do vinho carrascão que alguém derramou no chão provoca náuseas à senhora de cabelo eriçado dos lados, com laivos dourados nas pontas estragadas. Ao fundo, no lugar encostado à janela, do lado direito de quem entra, está um senhor com um chapéu de palha na cabeça, com feridas abertas nas mãos e o rosto encarnado, ébrio. Perto de Alcântara, Manuel é surpreendido pela entrada de dois fiscais, direitos e aprumados.

- O seu bilhete, por favor. – gaguejou o mais novo, inexperiente.

- Está aqui. Tudo em ordem? – perguntou o Manuel, em tom de gozo.

- Sim, está. – respondeu o fiscal, dirigindo-se embaraçado para o homem de barba cinzenta – O seu bilhete, por favor.

- O meu nome é Jacinto Rodrigues e gosto muito de pombas. As putas só têm o que merecem – balbuciou, sem levantar os olhos sob o efeito do vinho que não desperdiçara.

Uns bancos mais à frente estão duas senhoras emproadas, vestidas com longos casacos de pêlo branco. Vêem carregadas de sacos e com os pés ainda a latejar da penosa corrida para apanhar o eléctrico. Falam e riem alto desdenhando as vidas alheias e captando a atenção de todos os passageiros, incluindo a de Manuel. O único que não olhou foi Jacinto. Não se importava com isso.
Ao deparar-se com o ajuntamento de pessoas irrequietas na farmácia, os nervos de Manuel dispararam. Esta era a única farmácia em Lisboa que ainda não tinha esgotado o stock de botas. Após aproximadamente duas horas, o número de Manuel é finalmente evocado por um responsável de farmácia.

- Muito bom dia! Quero duas botas protectoras. Umas para mim e outras para a minha mulher. Números 38 e 43, se faz favor.

- Entendido. Tem preferência na cor? Temos em preto e em verde.

- Verde. As duas. Obrigado.
A motorizada vermelha


Manuel cresceu numa quinta com os três irmãos, nos arredores de Lisboa. Os mais novos, João e Duarte, emigraram para França, logo após a Revolução dos Cravos e Manuel não os vê desde então. O mesmo acontece com o irmão mais velho, Hilário. A última vez que o viu, se a memória não lhe falha, foi no Outono de 86. Encontraram-se por acaso em Massamá. Estava um dia quente e chuvoso e Hilário parecia bastante empolgado por ver o irmão. Apesar de breve, Manuel nunca mais se esqueceu daquele encontro. Nesse dia, ao contrário dos outros, Hilário parecia alegre e bem-disposto. Confidenciou-lhe que tinha conhecido uma rapariga e que estava apaixonado. “Ela é prostituta”, segredou-lhe ao ouvido e corou. Manuel não disse nada. Não teve tempo pois Hilário foi rápido na despedida, tendo gritado apenas do outro lado do passeio: “Se perco o comboio, estou tramado com ela! Dá um beijo meu à Carminho”.

- Onde é que está a minha camisola preta? - perguntou Manuel impaciente.
- Qual? Aquela de malha grossa? Está no cesto da roupa lavada. Vai lá buscá-la e veste-te rápido. Não quero chegar atrasada.

(continua)

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Duas camas em pólvora

Era uma vez duas camas que segredavam silêncios resguardados nas paredes do quarto maior da casa. Quase em sussurro, abriam os trâmites da memória desnudada e descobriam-se sozinhas, perpetuando-se.
O mundo das camas-amantes era aquele quarto, antigamente ocupado por um casal de meia-idade, ele plácido e impávido ela altiva e distante. Ambos se recusavam a afugentar as rugas dos velhos lençóis, a trocar as fronhas amareladas das almofadas ou a fazer uma amável dobra no lençol. Eram inquilinos frios, amantes desinteressados, seres que fraquejavam ao mínimo impulso de violência.
Começaram por discutir sobre insignificâncias mundanas – os dois amantes distantes. Depois resolveram, por mútuo acordo, afastar as camas (que eram duas para fazer uma). Depois separaram-se e puseram a casa, toda mobilada, à venda. Sem escrúpulos pelas camas que se amavam, odiaram-se até que a morte veio e lhes sugou o suco da vida.
As duas camas-amantes sentiram-se usadas e descartáveis, até mesmo corrompidas. Já nada havia a fazer senão devorarem-se ainda mais, com maior intensidade, com força maior, com vigor acrescido, com pleno sentido de consciência do que significa o amor entre duas camas em pólvora.
O sol começa a derreter-se. Digestão lenta e atordoante. O vento desconcertante toca piano do lado de lá da janela e o ranger das vidraças faz os pés das camas gemer; trocam carícias e enroscam-se na colcha rendilhada, pirosa, muito floreada. Entregam-se ao prazer ordinário e sucumbido que mora para além do assédio binário, uma vez cedido.

sábado, 3 de outubro de 2009

Os suplícios do Josué

O antigo homem dos sete ofícios
Muito corado e envergonhado
Carregava aos ombros demasiados suplícios
Fúnebres trajes abandonados.

Ao Josué deram liberdade e poder de escolha,
Com consciência fonológica,
Mas tudo à sua volta pedia a recolha
Da sucumbida experiência analógica.

Um, dois, três degraus
Subidos pelo Josué
Comidos por leões de crateras
Ao longo do torso torto morto.
Da poesia dos astros incólumes.
Do rugido do rei roxo
Que é sagrado purpúreo púlpito.

“Quem sou eu?” – gritou o Josué em cima de tábua instável.

A não-resposta disse que sim
ao homem dos sete ofícios
iludido pelo doutor petório
e pelo sentido notório
da existência dos anjos analfabetos.

“Suplícios, suplícios!” – gritou o Josué criando alarido.

“Deram-me tantos suplícios!” – chorou o Josué numa cena comovente.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

O sofá perfeito (continuação)

No dia seguinte, o Meia-Cuca acorda com o toque alvoraçado do despertador. Sonhou com o tetravô sentado de pernas cruzadas no quintal a chorar compulsivamente; com a tetravó a correr louca pela casa; com gatos desvairados à caça de formigas gigantes. O Meia-Cuca só não se lembra de que foi ele o responsável pelo pranto do tetravô, pelo pânico da tetravó, pela caça felina às formigas. Adiante.
Até hoje, o Meia-Cuca foi sempre um trabalhador pontual. Desde o início que caiu nas boas graças do patrão. Respeita na íntegra os horários de trabalho, obedece calado e passivamente a ordens disparatadas. Não questiona, executa. Mas logo hoje atrasa-se. Pobre augúrio.
Quando chegou do trabalho, exausto, despiu rapidamente o fato quente e pesado do trabalho, numa tentativa de se livrar do peso do dia. Ouviu longas reprimendas do patrão, foi alvo de chacota entre os colegas de trabalho, atabalhoou-se na entrega de documentos importantes.
Ao abrir a porta da sala, que fechara propositadamente na noite anterior, o olhar do Meia-Cuca embate naquele sofá castanho misterioso, cujas costuras estão gastas e ao qual faltam dois dos quatro pés de apoio. Senta-se, comodamente, e só acorda sete dias depois.