quinta-feira, 8 de outubro de 2009

A PRAGA

Tudo funcionava como devia funcionar – a chamada ordem das coisas, mutável, assente em terras movediças. Ora a vizinha arcava com as desculpas dos condóminos sobre o cheiro a mijo na entrada do prédio, ora o calceteiro brigava com o funcionário do Estado por este ter estacionado a viatura em cima do passeio em obras, ora o turista inglês, de mala às costas e mapa na mão, pedia indicações sobre o castelo de São Jorge.
Tudo funcionava como devia funcionar até que “o que comeu as duas Marias”, o rapaz das oficinas experimentais, foi mordido por uma cobra, mesmo ao largo do Rossio. O caso era inédito e dava pano para mangas. Não há memória de alguém ser atacado por uma cobra mesmo no coração de Lisboa. Mas, ao que parece, as coisas mudaram.

A história das duas Marias

Num dia quente, banal, igual a todos os outros, o rapaz passeava pelo Rossio de braço dado com as duas Marias, moçoilas robustas e rosadinhas, órfãs de mãe. Não se contentou com uma. Fez o que pôde para levar as duas a passear. E lá foram os três pavoneando-se pela cidade, ele de papo erguido e barriga encolhida, dentro de um pomposo fato castanho que pertencia ao seu pai; elas exibindo os bustos acentuados pelo decote dos vestidos colados ao corpo e rindo alto para chamar a atenção dos que caminhavam na rua. Mas o encontro não acabou bem, pelo menos para o rapaz. Decidiram parar para tomar café e conversar. Ao entrarem na pastelaria, todos os olhos caíram em cima das duas Marias, esplendorosos arquétipos de feminilidade. O empregado que os atendeu tremia ao anotar os pedidos no velho bloco e elas, as Marias, encantaram-se com o jeito desajeitado daquele garoto, vermelho que estava. O rapaz, claro, percebeu tudo. “Quem são elas para me desprezarem desta maneira?”, cogitou, indignado. E, sem meias medidas, levantou-se bruscamente da cadeira, entornando propositadamente os galões em cima dos vestidos das meninas, que se mostraram demasiado atrevidas para o seu gosto. Abandonou o café e nunca mais lhes dirigiu palavra.

Triste epílogo

O rapaz estava pálido e imobilizado. O veneno dispersava rapidamente pelo corpo, entorpecendo-lhe os músculos e provocando-lhe espasmos respiratórios. Assim que chegou ao hospital, foi imediatamente assistido por uma equipa técnica altamente qualificada no assunto. Tarde demais. O adversário adiantara-se ao roer-lhe as entranhas e o rapaz pereceu estendido na maca do hospital. Triste epílogo.
No dia seguinte, este acontecimento estranho foi relatado até à exaustão nos meios de comunicação (chupadores). “Víbora-cornuda ataca jovem em plena Lisboa”, fazia os cabeçalhos dos jornais. Na televisão, a ministra da Saúde emitia o alerta com uma expressão séria e preocupada, estimulando o pânico entre os lisboetas.
Carmo estava na cozinha quando o Manuel chegou a casa, já passava das dez da noite.

- Porque é que não me avisaste que ias chegar tarde? Estava tão preocupada contigo, homem. Ouviste as notícias?

- Qual delas? Há tantas por aí... Aquela do homem que morreu electrocutado ao tentar roubar fios de cobre? Ou aquela em que desapareceu a tartaruga do chafariz da aldeia de Cima? Para mim, esta é a melhor!!!

- Ai homem, homem, como é que te podes estar a rir numa altura destas? Anda uma cobra venosa em Lisboa, um rapaz já morreu e tudo.

- Isso é só para nos preocuparem, não vês logo? Acalma-te mas é e serve-me o jantar. Estou esfomeado! (Ao abrir a panela...) Caril de frango com quiabos? Outra vez Carmo? Já deito isto pelos olhos, francamente...

- Cala-te e come. Já não te posso ouvir com essa conversa, chiça!
Botas rijas de morder


Carmo acordou sobressaltada a meio da noite. Olhou para o lado e a expressão serena de Manuel acalmou-a por instantes. Ao entrar na cozinha, o suor escorre-lhe pelo rosto e as mãos tremem ao pegar no copo de água. Recorda-se apenas de partes desfocadas do sonho, paradas no tempo. A casa sem mobília, sem luz ao fundo do corredor. O ritmo dos guizos incandescentes ao longe e uma sensação peçonhenta na pele. Grunhiam-lhe ao ouvido mas parecia surda.

- O que estás a fazer acordada a estas horas? Desde que ouviste aquela notícia na televisão que estás assim – disse Manuel, entrando de rompante na cozinha.

- Às vezes ponho-me a pensar o que vai ser de nós. As contas para pagar, a tua doença e agora esta história das cobras e das botas. Só de pensar nisso fica toda arrepiada.
- Deixa-te de disparates. Não tens motivos para estar assim. Quanto às botas, não te preocupes, já tenho tudo controlado. Amanhã cedo resolvo esse assunto.

- Fico mais descansada.

- És uma mulher forte, desembaraçada, e é por isso que te admiro tanto. O que tu precisas é de uma boa noite de sono. Vá, vê se dormes.

- - -

O eléctrico amarelo com destino à Ajuda inicia viagem. O som das rodas a roçar nos carris encoraja os putos que se empoleiram na parte traseira do transporte público. Os lugares sentados estão todos ocupados e Manuel encosta-se junto à porta de saída. O cheiro do vinho carrascão que alguém derramou no chão provoca náuseas à senhora de cabelo eriçado dos lados, com laivos dourados nas pontas estragadas. Ao fundo, no lugar encostado à janela, do lado direito de quem entra, está um senhor com um chapéu de palha na cabeça, com feridas abertas nas mãos e o rosto encarnado, ébrio. Perto de Alcântara, Manuel é surpreendido pela entrada de dois fiscais, direitos e aprumados.

- O seu bilhete, por favor. – gaguejou o mais novo, inexperiente.

- Está aqui. Tudo em ordem? – perguntou o Manuel, em tom de gozo.

- Sim, está. – respondeu o fiscal, dirigindo-se embaraçado para o homem de barba cinzenta – O seu bilhete, por favor.

- O meu nome é Jacinto Rodrigues e gosto muito de pombas. As putas só têm o que merecem – balbuciou, sem levantar os olhos sob o efeito do vinho que não desperdiçara.

Uns bancos mais à frente estão duas senhoras emproadas, vestidas com longos casacos de pêlo branco. Vêem carregadas de sacos e com os pés ainda a latejar da penosa corrida para apanhar o eléctrico. Falam e riem alto desdenhando as vidas alheias e captando a atenção de todos os passageiros, incluindo a de Manuel. O único que não olhou foi Jacinto. Não se importava com isso.
Ao deparar-se com o ajuntamento de pessoas irrequietas na farmácia, os nervos de Manuel dispararam. Esta era a única farmácia em Lisboa que ainda não tinha esgotado o stock de botas. Após aproximadamente duas horas, o número de Manuel é finalmente evocado por um responsável de farmácia.

- Muito bom dia! Quero duas botas protectoras. Umas para mim e outras para a minha mulher. Números 38 e 43, se faz favor.

- Entendido. Tem preferência na cor? Temos em preto e em verde.

- Verde. As duas. Obrigado.
A motorizada vermelha


Manuel cresceu numa quinta com os três irmãos, nos arredores de Lisboa. Os mais novos, João e Duarte, emigraram para França, logo após a Revolução dos Cravos e Manuel não os vê desde então. O mesmo acontece com o irmão mais velho, Hilário. A última vez que o viu, se a memória não lhe falha, foi no Outono de 86. Encontraram-se por acaso em Massamá. Estava um dia quente e chuvoso e Hilário parecia bastante empolgado por ver o irmão. Apesar de breve, Manuel nunca mais se esqueceu daquele encontro. Nesse dia, ao contrário dos outros, Hilário parecia alegre e bem-disposto. Confidenciou-lhe que tinha conhecido uma rapariga e que estava apaixonado. “Ela é prostituta”, segredou-lhe ao ouvido e corou. Manuel não disse nada. Não teve tempo pois Hilário foi rápido na despedida, tendo gritado apenas do outro lado do passeio: “Se perco o comboio, estou tramado com ela! Dá um beijo meu à Carminho”.

- Onde é que está a minha camisola preta? - perguntou Manuel impaciente.
- Qual? Aquela de malha grossa? Está no cesto da roupa lavada. Vai lá buscá-la e veste-te rápido. Não quero chegar atrasada.

(continua)

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