quinta-feira, 13 de maio de 2010

Sonho de Hipnos

Não sei se durmo ou se estarei acordado. Mas sinto-me velho. Tenho o bigode despenteado de tanto amimar a almofada e não acho a parte de cima do meu pijama geométrico. De certo que estarei dentro de um sonho. A minha realidade sonhada. Remexo a cabeça e não encontro nenhuma visão do mar. Pois o que significará o mar para mim senão uma onda de força inatingível que me deixa perplexo a cada visão sua. Rendido, ainda tentei apanhar a cabeça que entretanto se desprendeu do meu pescoço e começou a rebolar colina abaixo, até embater contra uma rocha coberta de musgo que me pareceu macia. Lembro-me do campo de tulipas que um dia hei-de visitar. Ao longe, parece um campo de malaguetas com a ponta acesa onde acendo o segundo cigarro do dia. A partitura invisível, em estado selvagem, movimenta-se em torno do meu próprio corpo, composta ora por sopros de árvores, ora por espirros de peixes ao luar. Acredito no Deus que somos todos nós, homens e corvos. Acredito naquilo que vejo e não naquilo que os olhos me dizem. Para quê olhar (pois se tudo é luz-ilusão) quando podemos ter todas as sensações depois de adormecer. Vivo ciente das ciências da natureza. Não distingo cores, formas ou consistências. Tudo consequência das sopas de cavalo cansado que me davam de comer ao pequeno-almoço. Quando comecei a salivar uma cubana de ancas largas caiu desamparada em cima de mim. Não aguentei a pressão. Tudo ficou escuro de repente, pois ela trazia uma saia que lhe chegava aos pés, de tecido grosso alaranjado. Belisco a pele frenética em busca do sentido real das coisas mas ela fica irritada e grita-me que volte a mim. Eu consinto e baixo o pescoço porque a cabeça já era!

quarta-feira, 21 de abril de 2010

A casa muda

Eram cinco naquela casa minúscula, doentiamente claustrofóbica, onde apenas o chão se fazia ouvir rangendo. Um deles estava preso na despensa há mais de cinco anos. Ninguém sabia dela. Mas também ninguém perguntava. “Para quê?”, ruminavam em silêncio, em longos monólogos interiores, que nunca os levavam a lado algum.
Naquele dia, o chefe de família levantou-se mais cedo em relação ao que estava acostumado. Precisava de cortar as unhas antes de sair para o trabalho. “Putas que não páram de crescer” praguejava. Virou-se para o lado e pediu à matriarca para acender a luz porque a lâmpada do candeeiro do seu lado estava fundida há séculos. Notou que estava sozinho e empalideceu. Primeiro de espanto. Depois de medo. Seria um sonho? Veio a dúvida e o patriarca chorou, chorou e chorou...
Não sabia ele que ela estava presa na despensa por opção. Sabia que ninguém se lembraria de procurá-la nas traseiras da casa, ninguém lá ia, muito menos à despensa.
Era uma família estranha que só sabia dar silêncio. Em troca, esse silêncio vinha e embatia reflectido no outro lado do espelho, e mais silêncio ainda. Ocasionalmente, a irmã dela largava um ou outro gemido em cantiga, ora quando lavava a loiça, ora quando se deitava à noite para atear fogo à flor. De resto, nem “ui!”.
Os que lá iam achavam aquela convivência disparatada de pessoas disparatadas profundamente aflitiva. Maldita casa sem voz. Lembro-me que aceitei visitá-los para me esquivar ao trabalho da parte da tarde. Mal toquei à campainha, abriram-me logo a porta sem perguntar sequer quem era. E se eu fosse algum louco varrido? E se em vez de mim estivesse à porta um gorila? Ou o meu patrão?
Mas no final daquela tarde, mesmo sem se terem feito ouvir, só posso acreditar que eles adoraram a tarte caramelizada que comprei na pastelaria em frente à minha casa. Moderna.

quarta-feira, 31 de março de 2010

Ó diacho!

- Então mas conta-me lá, deste com aquilo? O marceneiro já me tinha avisado que era bastante difícil chegar lá.

- Qu’ideia!

- Ideia? Qual ideia? Talvez não tinhas nada em que pensar e o...

- Por mim... Duas cabeças nas nuvens! A olharem para baixo. Presas à força pelas suas sombras esquizofrénicas e a menina fascinada a apontar para cima.

- Hum?!

- Hum?

- Nada, esquece.

segunda-feira, 22 de março de 2010

Maria

Da esquerda para a direita: a minha mãe, a minha tia, a minha avó, o meu avô e o meu pai. À frente, as minhas primas que viraram costas no momento do flash. Gosto, especialmente, da pose da minha mãe, o cabelo castanho a roçar-lhe os ombros e as mãos dadas apoiadas na barriga metida num vestido muito largo cor de salmão.
No meio, como já disse, estava a minha avó, com as duas mãos assentes na cintura, impávida e inexpressiva, talvez porque quem tirava a foto era o meu tio Mário. Mas não vou falar nisso. Quero, sim, escrever a minha avó, a sua doçura, a sua disponibilidade, a sua «matrafonice». Chamava-me de velhaca e que delícia era ouvi-la dizer isso, com tanta prontidão, com tanto afinco.
Lembro-me claramente da casa onde morava quando morreu. A porta verde, a maçaneta dourada e uma longa escadaria até lá acima, e o espelho comprido e o bengaleiro. Na cozinha, fascinava-me ver todas aquelas panelas amolgadas, arrumadas umas em cima das outras, num móvel antigo, e imediatamente me vêem à cabeça os estendidos, polvilhados com açúcar e canela, que costumava fazer quando íamos ao Rossio.
Gosto de imaginar a minha avó a dar uma tareia ao vizinho com a vassoura. O rapaz pô-la em tribunal, claro, e ela apregoava que se o apanhasse outra vez que lhe dava uma tareia ainda maior. Não vejo os mortos tão claramente como vejo a minha avó e logo me chega ao nariz o cheiro da laca que costumava comprar mais barata na galinha gorda. Todas as manhãs, empestava os cabelos pintados de castanho e o penteado lá se mantinha firme, preparado para o reboliço do seu dia. Já tinha enviuvado quando aprendeu a ler e a escrever, carregando com tanto orgulho o dossier da escola, as canetas azuis e vermelhas, as letras do abecedário que escrevia repetindo.
Houve um dia em que a minha mãe recebeu uma chamada do meu avô. Pela voz parecia bastante assustado. Contou que nessa noite a minha avó tinha saído de casa, em camisa de dormir. Com a idade, a minha avó dera em sonâmbula e isso faz-me crer que o sonambulismo é, de alguma maneira, genético.

- Estou sim? Fala da farmácia? – perguntaram do outro lado da linha.

- Não, não. A senhora deve ter-se enganado no número – respondeu a minha avó, desligando o telefone.

(o telefone tocou outra vez)

- Estou? Fala da farmácia? – perguntaram de novo, ao que a minha avó respondeu: - Não, minha senhora, isto aqui não é nenhuma farmácia, mas o que não falta aqui são remédios – e desligou.

sagrado

Acredito francamente,
Devotamente até, no «sagrado pintor»
No santo, no sacro, no sacrossanto,
Se por sagrado se entender o amor

Porque isso de cobrar favores,
Ao pobre, ao analfabeto, ao cantador,
(som dos tambores)
Não tem em si qualquer valor

No fundo, bem lá no fundo,
De nada vale o espanto do orador
Que uma vez é atraiçoado, outra é o traidor
E a dor é tanta
E o sofrimento é tanto
Oh! se tanto

a primavera que entoou no seu regaço


O amante de segunda colou-se à página do livro e manchou as palavras de Dali, «do método que o ultrapassava então», quando Helena pulou da cama para dar um risco de coca à janela, em bicos de pés, encarrapitando-se no parapeito ascendente da vida. Aspirava com o olhar o voo das aves marítimas e voava ao seu lado sem roupas e os globos oculares gotejavam tal era a pressão do ar; pusera-se nevoeiro e de repente perdeu-as de vista e caiu amortecida pelo peso do seu regaço, das suas coxas, dos seus braços, do seu ventre.
Pôs o livro de parte, provavelmente na gaveta da mesa-de-cabeceira, junto aos tampões amorfos para os ouvidos, e pensava como era bom lambuzar-lhe o comprimento, as veias, as protuberâncias laterais, com a mesma voracidade com que uma criança chupa um calipo num fim de tarde escaldante.
Helena estava deitada com uma serpente que além de lhe ter dilatado as pupilas, fê-la atirar a realidade para trás das costas e levantar voo, concentrando-se no mistério genital inflamado, nas pequenas gotas que se transformaram numa capa húmida. Brincava com a parte inferior do objecto fálico, andava à roda com ele, apressava-o ou então incentivava-o a passear pela púbis, arbúscula de pêlo. Os grandes lábios, reflectidos no espelho, adensavam e projectavam-se para fora, como a boca faminta de um peixe do rio; e a fenda delicada expandiu-se em flor, flexível à grossura do objecto vibrante.
Toda aquela agitação fez os pés da cama ranger, mas só ela pareceu não ouvir o ruído no momento em que a sua vagina sofreu uma contracção mais forte e se agarrou ao pénis falso, como fazem as raízes em terreno fértil. Desta vez, preferiu não proferir palavras ordinárias, não gemer, não gritar. Deixou que o prazer viesse ao seu encontro. Esticou-se na cama, com um dos joelhos dobrados e o braço esquerdo debaixo da almofada e, ao olhar-se ao espelho, viu a silhueta de uma mulher-estátua envolvida em pó de gesso.
O que mais lhe dava gozo depois de atingir um orgasmo era ver o corpo desintumescer, a sensação de alívio que dava o mote a longos monólogos interiores, nos quais se juntavam o pai, os irmãos e o avô numa zaragata tão grande que logo fugia para o deserto, enterrando os braços e as pernas na areia quente, tornando-se enfim uma miragem.
Apanhou o livro do chão e esticou um risco veloz na página manchada que citava: Um dia, esvaziei completamente o interior de um bocado de pão, e que pensam que coloquei no seu interior? Um pequeno Buda de bronze, cuja superfície metálica enchi de pulgas mortas. Depois, fechei a abertura do pão com um pau, cimentei tudo... de modo a formar um todo homogéneo, como se fosse uma pequena urna, no cimo da qual escrevi: Compota de cavalo. O que significava isso?




domingo, 21 de março de 2010

Tarde de Verão

Amadas as belas loucas tardes de Domingo
Que passo com ela no cúbico
É linda ela!
E gosto de como a luz não entra
E de como a escuridão não sai
Improviso algumas piadas que a façam rir
Pois gosto que ela sorria...

Ou não?

Bela é a tarde de Verão.


Gordo

Caetano (exercício)



Uma mulher de pele escura atravessou-se à sua frente, exibindo um colorido turbante no cima da cabeça. Sentiu o seu aroma e desejou possuí-la, ali mesmo, no largo do Chiado. Decerto que os transeuntes não se importariam de ver os seus corpos cantar o fado ao amanhecer. Caetano andava sempre com o cabelo arranjadinho, as unhas castanhas do surro, o fecho das calças aberto e dele uma pila a apanhar ar fresco. Adorava vê-las passear e imaginar-lhes a cona. Camões não o recriminaria, era o seu fiel companheiro, estava ali para apoiá-lo nas horas do vinho. Além disso, a seu ver, todas eram esbeltas, fossem gordas, anafadas, magras, esqueléticas. Em todas era capaz de enfiar o seu besugo e desejava-o tanto, ansiava-o tanto... Mas coitado do Caetano... morreu virgem.




Desenho do Tagas "Agarra-me"
(http://palaciodeossos.blogspot.com/)

sexta-feira, 19 de março de 2010

A carta

«Como todos sabem NÃO GOSTO QUE ME INTERROMPAM durante um discurso que considero ser eloquente... Quando me enervo não consigo impedir que os meus sentimentos fiquem completamente a nu, passando desta forma a pertencer ao domínio público. E isso dos outros de fora conhecerem-me por dentro é para mim tão tenebroso que só de pensar nisso suo abundantemente das mãos, criando enormes poças de suor à minha volta.
Sendo uma mulher celibatária e tendo criado intencionalmente raízes numa solidão desmedida, espero que aqueles com quem me cruzo não me dirijam a palavra. Fico apavorada só de pensar nos transeuntes que ostentam um ponto preto no rosto como se fossem balões presos por corpos magros.


Teresa»

sem tónica

David observava atento o piano de cauda longa, os cortinados floridos, a vasta colecção literária na estante junto ao sofá. Mas foi o quadro, no qual duas mulheres-cavalo choravam desconsoladas a morte do filho-potro, personificada por um leito castanho suspenso no ar, que lhe captou a atenção.

- Comprei-o numa loja de antiguidades em Barcelona. Gostas? – perguntou o maestro.

- É invasivo. É quase doloroso.

- Sempre que olho para ele dá-me vontade de rir. As criaturas com longos bustos e pernas musculadas. Queres beber alguma coisa, antes de subirmos?

- Aceito um gin, com gelo e limão. Sem tónica.

Reflexões sobre a moral enquanto preconceito - Friedrich Nietzsche

«A minha tarefa de preparar à humanidade um instante da mais elevada auto-reflexão, um grande meio-dia em que ela possa olhar para trás e para muito além de si, em que se subtraia à dominação do acaso e dos sacerdotes, e em que ponha pela primeira vez, como totalidade, a questão do «porquê?» e do «para quê?» - semelhante tarefa segue-se necessariamente do discernimento de que a humanidade não está no seu recto caminho, de que não é regida pela divindade, de que, pelo contrário, sob os seus mais santos conceitos de valor, imperou sedutoramente o instinto da negação, da perversão, o instindo da décadence. A questão da origem dos valores morais é, portanto, para mim uma questão de primeira importância, porque condiciona o futuro da humanidade. A exigência de que se deve acreditar que tudo, no fundo, se encontra nas melhores mãos, que um livro, a Bíblia, proporciona um definitivo apaziguamento sobre o governo divino e a sabedoria no destino da humanidade, é, reconvertida para a realidade, a vontade de não deixar surgir a verdade sobre o seu lastimoso contrário, a saber, que a humanidade esteve até agora nas piores mãos, que ela foi governada por depravados, por sedentos de astuciosa vingança, pelos chamados «santos», esse caluniadores do mundo, que desonram a humanidade. (...) Quando, no interior do organismo, o mais modesto órgão deixa de impor com plena segurança a sua auto-conservação, a sua reserva de energia, o seu «egoísmo», o todo degenera. O filósofo exige a ablação da parte degenerada, nega toda a solidariedade com o elemento degenerado, está bem longe dele ter compaixão. Mas o sacerdote quer justamente a degeneração do todo, da humanidade: por isso, conserva o degenerado - é a este preço que ele a domina... Que sentido têm estas noções enganadoras, os conceitos auxiliares de moral, «alma», «espírito», «vontade livre», «Deus», senão o de arruinarem fisiologicamente a humanidade?...»
Friedrich Nietzsche, in "Ecce Hommo", páginas 70 e 71

quinta-feira, 18 de março de 2010

Ai cobras que lá foi ele




Era uma tarde de Fevereiro
Sem açucar no açucareiro
Pescavam tantas toneladas de arreiro
Chiça! Que mau cheiro alcoviteiro

Suplicou ao santo padroeiro
Para que a chuva não trouxesse o nateiro
E não lhe afogasse o pobre do carneiro
Que pasta livre as relvas do carreiro

Mas o santo padroeiro
arrieiro arteiro
ignorava-o de modo grosseiro
Pois era filho de terceiro
Pobre inútil, tornado rafeiro

E o homem dizia: «sou filho de um vendedor careiro,
Que trabalhava aos sábados no Barreiro,
Dando milho à boca do touro vareiro
E chuto tão pouco dinheiro
Por isso assassinei meu irmão, o herdeiro
Não me lembro se com uma faca ou um tiro certeiro
E ao querer fazer de mim guerreiro
Tornei-me de mim prisineiro
Só me resta pegar no isqueiro,
Algures no bolso, solteiro
E com um toque gesticular ligeiro
Acender o cigarro de um marinheiro
Que um dia me disse «sê verdadeiro»






terça-feira, 16 de março de 2010

Ouvidos de Burro

No meu mundo sedentário
Pregam espinhas aos peixes
Regem uma vida de cão
Dão asas a desleixes

No meu mundo sedentário
Convertem lesmas em ouvidos de burro
E advogam que o pão chega para todos
E que o calvário não chega ao curro

No meu mundo sedentário
Cochicham os pés do vizinho
E o corpo agrário
E a saia afoita do rapazinho

Neste mundo sedentário
Divago em terceira classe
Sem cama, nem armário
Seria louca se o ocultasse

Os Filhos Rebeldes

"Se alguém tiver um filho desobediente e rebelde, que não faz caso daquilo que o pai e a mãe lhe dizem e, mesmo quando o castigam, continua a não fazer caso, os pais devem levá-lo à presença dos anciãos daquela cidade, para lhes dizerem: "Este nosso filho é desobediente e rebelde e não faz caso das nossas ordens. Só quer comer e beber." Ele será então condenado à morte e apedrejado pelos habitantes daquela cidade. Dessa forma, acabas com aquele escândalo do meio do teu povo. Todo o povo ouvirá contar isso e ficará cheio de medo."
Passagem da Bíblia (Livro do Deuterónimo, capítulos 21 e 22, do versículo 18 ao 21)

segunda-feira, 15 de março de 2010

Separar verdade e mentira é ficção?

É uma contraposição irreal. A verdade não existe. Inclusive a noção de quem somos - não que seja mentira no sentido de falsidade - é a soma de lendas, contos e das nossas respostas aos contos que, por sua vez, também são um conto...

E há a memória, outra mentira...

Até há poucos anos era fonte de especulação literária e filosófica, mas hoje é uma verdade científica: para o cérebro é o mesmo uma coisa recordada e uma coisa inventada. Em muitos casos, quase tudo o que é recordado é, senão uma invenção, pelo menos uma reinterpretação de uma recordação. Provavelmente a literatura existe por estarmos sempre a reinterpretar memórias.

Excerto de uma entrevista a Enrique de Hériz, autor do livro "Mentira"

O Abraço da Ursa Húngara

«A missa deve estar quase a começar», disse com a voz ainda oscilante. Pegou num lenço de renda preto, cobriu o cabelo e o pescoço e saiu de casa. De facto, o olhar terno e imaculado de Alenka parecia carregar consigo a ideia de um túmulo capaz de guardar os segredos mais íntimos. E ele sabia-o.
Ia tocar à campainha quando reparou que a porta estava entreaberta. «Estás aí? Posso entrar?», sussurrou. «Entra, estou no quarto», respondeu Alenka. Encontrou-a deitada no tapete de pêlo cinzelado, contorcendo o seu corpo franzino, como se o diabo tomasse as rédeas do seu corpo.
Gabor estava ainda de pé, com as calças caídas, quando Alenka lhe engoliu o tronco do pénis, simulando uma penetração comum. Lambia-o para cima e para baixo com a ponta da língua e beijava-lhe a cabeça de frade, imprimindo uma ligeira pressão com os dentes. Subitamente, Alenka abocanhou-lhe a bolsa do escroto, sugando os testículos alternadamente. As ondas eléctricas de prazer que se dispersavam, como faíscas, pelos pontos erógenos do corpo de Gabor incitaram-no a empurrar Alenka para trás e a sentar-se na borda da cama. Por pouco que não se veio. Chamou-a novamente. Acima de tudo, desejava possui-la, aconchegá-la e assim Alenka poisou as bochechas do rabo no seu colo, sentindo finalmente o pénis duro como o tronco de uma árvore beijar-lhe os lábios e trepar-lhe a vulva. Enlaçou as pernas franzinas à sua cintura, chegando-se a ele o mais possível de forma a tornar a cópula mais intensa. O abraço era activo, suplicava posse, e ela provocava-o, movendo os quadris com brutidão. Os olhos verde-água de Alenka estavam fechados, dando asas à imaginação das mãos que acariciavam aquele corpo macio, «cheio de graça». Os seus sexos pareciam soluçar, deitando lágrimas de prazer. Pareciam envoltos num duelo recíproco, ele puxando-lhe o cabelo âmbar que, como uma cortina, encobria as auréolas róseas dos seus seios, ela arranhando-lhe as costas largas e transpiradas. O tacto molhado das línguas e dos dentes parecia instigar um braço de ferro cada vez mais inquietante e os corpos fundiam-se numa espiral de sensações erógenas, rendidos à fluidez do outro, sentados no silêncio que ecoava pela casa. A temperatura subia e num impulso, o clímax estalou em infinitas pepitas de ouro.
Enquanto caminhava para a Igreja, começou a sentir o esperma escorrer-lhe lânguido pelas pernas. Dois miúdos que passavam com a mochila às costas cochicharam alguma coisa ao ouvido e desataram-se a rir. «Será que tenho a saia molhada?», questionou-se Alenka, atraiçoada pelo carmim das bochechas. Apesar do constrangimento, orgulhava-se daquela sensação de transgressão, de ousadia, de individualidade, sobretudo. Sentou-se no banco da frente, virado para o altar-mor, inclinou a cabeça e ajoelhou-se perante Deus.

sábado, 13 de março de 2010

O Escultor Argentino

Há já uma semana que não parava de chover na região de Los Andes. Os lagos e rios transbordavam o leito e isso inspirava-o quando se masturbava à janela do primeiro andar que alugava a um senhor de cabelos grisalhos, reformado dos cadernos da poesia, sempre bem acompanhado por uma bengala e um charuto pendurado no canto direito da boca.
Era uma casa discreta, simples, situada na parte norte da cidade de Chapelco. Orgulhava-se de precisar apenas de um colchão para dormir e de pratos e talheres para comer. Desprezava ostentações inúteis, como os tapetes ou os cortinados que dizia serem um capricho dos homens. Aimón admirava, sobretudo, a simplicidade da casa, a sua alvura, a luz da manhã que penetrava pela janela despida que dava para uma pequena praceta.
Era um homem solitário que raramente se entregava à volúpia e às tentações da carne. Amava as artes, particularmente a escultura que lhe transmitia sensações díspares de espiritualidade, alegria, dor e tesão. Mas sempre que, a caminho do trabalho, passava por aquela casa azul não resistia a dar uma espreitadela receosa, imaginando por instantes fazer daquele mundo clandestino, como se uma daquelas sombras voluptuosas fosse a sua própria sombra.
O escultor, como era conhecido na cidade, comia à pressa uma carbonada quando ela entrou de rompante, sacudindo o casaco ensopado, depois de pousar o chapéu-de-chuva ao lado da porta empenada. Atravessou o tasco em direcção à casa de banho e saiu tão rápido como entrou. O choque de Aimón foi instantâneo, quase voraz, ao ver entrar aquela mulher mestiça, vestida de vermelho, o cabelo entrançado a beijar-lhe o ombro. Sentiu-se inquieto e desnorteado, como se o seu peito tivesse entrado numa angulosa espiral de pressão que lhe espevitou o pau de fumo. Pensou se se atreveria a segui-la, se teria coragem. «Não», pensou de instinto mas logo foi impulsionado por uma vaga de sensações que o fizeram levantar-se da cadeira e deixar a carbonada ainda morna no prato de barro.
Ansiava saber quem era aquela mulher de pele cor de café, o que fazia e para onde iria com tanta pressa. E lá foi ele, de peito erguido, com ar sobranceiro, às vezes vacilante. Por sua vez, ela abanava as ancas prometedoramente, evidenciadas pelo vestido de malha fina que se colava à sua pele, como um filho se agarra à saia da mãe. Os peitos estavam gordos e avolumados, como dois globos que indicam o caminho para Sicília. Tinha os tornozelos inchados e a barriga era proeminente, altiva, dominante. «Deve estar no sexto mês de gestação», pensou o escultor.
Mas, a dada altura, Aimón interrompeu o passo. Estagnou ao ver a mulher de vermelho entrar na casa azul, a famosa Casa de las Putas situada parte rica da cidade. Nem queria acreditar. Questionava-se se seria o destino ou mero acaso. Depois de alguma hesitação decidiu entrar. A atmosfera exalava fumo pelas orelhas, o ambiente estava quente, a decoração fantasiosa e albergava camas que se perdiam de vista. Pediu para falar com a mulher que acabara de entrar à madame vestida com uma camisa de dormir azul translúcido, com duas mangas borboleta. A boquilha era longa, demasiado longa até, visto que a ponta do cigarro quase lhe osculava o nariz. Sem pronunciar uma palavra, a madame apontou indiferente para uma pequena divisória, deixando cair as beiças num copo largo de mojito. Aproximou-se e viu a sombra da mestiça passear-se pela parede e a acomodar-se num cadeirão de pele preta. Tinha agora o cabelo solto, crispado e negro como o carvão.
Debruçada em frente ao espelho, com uma das pernas apoiadas no braço do sofá, convidava à entrada. Apertava incessantemente os bicos de Vénus contra o outro enquanto friccionava com os dedos o alagadiço buraco da coruja. Acariciava a barriga saliente e fazia expressões libidinosas e ele, escondido na penumbra da porta, deixou escapar um gemido arquejante que ecoou pela casa. Levou de imediato a mão à boca mas era tarde demais.
«Podes entrar, se quiseres, e olhar para mim. Gosto de ter público e já vi que gostas de barrigas grandes». Aimón aproximou-se, comprometido pelo volume da bengala dobrada dentro das calças, e sentou-se à beirinha da cama. Admirava cauteloso a amazónia riça da sua púbis, os lábios anafados que protegiam o seu delicioso banco de esperma. Estava molhada e contorcia-se morosamente, dado o peso do ventre gigante. Veio-se, enfim, com um grito profundo e a tromba de elefante de Aimón cabriolou ao ver a fenda babar-se de prazer.
O corpo estava agora mais saciado. Faltava apenas acender um cigarro para que o sentimento de descontracção atingisse a sua plenitude. Mas logo notou que estava sozinha. Aimón tinha abandonado sorrateiramente o quarto e saído pelas traseiras da casa, com o zezinho molhado entre as pernas.

O Pantanal

Abri as pernas em brasa.
Vi-me camuflada. Volvi.
Numa farda engomada
Que me obrigaram a vestir
E consenti.

O aberto movimento sensual
Clítoris-flor trabalhado
Circular anal,
Pelo pau abençoado.

E a púbis vermelha da fricção
Tal era sôfrego o órgão animal
Tão bruta, violenta sensação
Sexual.

E o cheiro côncavo floral
Expelido da penetração lamaçal
Nele vi-me, canibal
Com a cara pisada, excessivo carnal

Gavetas

Se fosse fácil escrever os sentimentos que por vezes nos fazem ajoelhar, que nos fazem crer na nossa pequeneza então não estaria há mais de um ano a tentar escrever esta carta. Mas ainda acredito na constelação mais bela e harmoniosa Universo e desta também faço a minha única certeza. Porque nada desaparece, é apenas comutado, substituído. Crescem árvores novas, mas as que morreram continuam vivas se continuarmos a pensar nelas.
Ao fim de tantos anos, o espaço íntimo sublevou-se, individualizou-se, afastando consigo as possíveis errâncias que o destino cruel teima em invocar. Por conseguinte, a separação tornou-se inevitável, à luz de parêntesis obscuros, que nos fazem optar por caminhos diferentes; e nada é durável, tudo muda, tudo é foi, nada acontece, escreveu o escritor; a girafa está em chamas, assustada. «Permitirei o incêndio das chamas refulgentes no meu corpo? Ou estarei queimada antes mesmo do incêndio deflagrar?»
Daí questionar-me sobre o que é, e não é, definitivo. Quem nos comanda? O que nos garante? O futuro? Sigo em frente, meio absorta, atribulada, tropeçando aqui e ali, deixando cair cortinados alheios. Contudo, num instante sombrio, penso e olho para as minhas entranhas, revolto-me contra mim e pontapeio o meu estômago vazio. O passado atordoa-me, enjoa-me pensar que a compreensão ficou algures lá para trás. Nunca me apontou um dedo. Não havia queixas, reclamações, exigências, lamentos. Existia, sim, plena aceitação mútua, tu eras eu e sem resquícios de absorção. Se alguém travava conversa comigo, travava conversa também contigo.
Pergunto-me se de noite choravas. Eu chorei durante meses. Hoje não. Aprendi a aceitar e a compreender, mas o sentimento de angústia, esse carregarei comigo para o resto da vida. No fundo, sou cobarde, débil, irresoluta e vacilante. E pior do que ser cobarde, é sê-lo conscientemente. Talvez a vida nunca tenha feito sentido para ninguém. Por isso escrevo, escrevo muito, escrevo sem pensar no que escrevo, escrevo sem segundas intenções, sem necessidades de rodeios asneados. Não obstante, a essência estará lá, sempre, crescemos, diferenciamo-nos. Creio, talvez erroneamente, que nada mudou, que somos felizes.

quinta-feira, 11 de março de 2010

As garças

O jardim parecia envolto num nevoeiro húmido que se entranhava perversamente na pele e encobria os passos ociosos de um gato persa de pêlo azul-cobalto. Por momentos, a cauda serpenteante do animal parecia tomar a forma de um pénis astuto, sacudindo lentamente o fumo que cinzelava o rosto das duas amantes.
Escondido atrás de um biombo de cor acre, desenhado à mão, Kabir sentia uma inebriante sensação de prazer atravessar-lhe o corpo ao mirar as duas mulheres que consumiam ópio numa exuberante chaise-longue verde abacate. Os seus lábios juntavam-se em beijos sôfregos e prolongados. Dera-lhes o nome de Langa e Lien.
Começava a sentir a libido brotar dentro de si ao ver as pernas de Langa, reveladas por um diáfano quimono de seda pérola, abrirem-se delicadamente como as asas de uma garça, enquanto Lien lhe lambia demoradamente os seios redondos. O jovem mirava atento, acompanhando o movimento da mão que descia pelo ventre liso de Langa, até alcançar o clítoris. E nisto, o samba dos dedos tomou balanço, ora de cima para baixo, ora num movimento circular, apoiando-se sobre a vulva carnuda e humedecida.
Gradualmente, os néctares vaginais levemente aromatizados a citrinos intensificaram-se, foram pronunciadas palavras de volúpia, os dedos molhados de saliva escorregavam à volta dos mamilos, que respondiam enrijecendo. Um desejo carnal exasperante apoderou-se de Kabir quando Langa começou roçar o curto cabelo âmbar entre as coxas de Lien, arranhando-lhe os lábios e provocando-lhe vagas de prazer até que a tensão rebentou em mil gemidos e suspiros, conduzindo ao cume do prazer.
Kabir despertou num impulso, asfixiado. Abriu os olhos e viu-se de braços abertos, com os dedos cravados nos lençóis de cetim e as pontas dos pés curvadas. Os testículos elevaram-se, anunciando a eminência do orgasmo e o corpo, atormentado por uma pressão violenta, libertou-se numa explosão íntima de prazer. Lentamente a serenidade impôs-se e os músculos do corpo baixaram a guarda. O alívio era agora pleno.

terça-feira, 9 de março de 2010

Arte erótica chinesa


Complexo canibal

Aquando o tempo o permitiu,
Regaram com mel, cheiro vício sexual
O clítoris em círculos ainda frio
E os cheiros côncavos, propensão carnal

Desce a língua indiscreta abaixo da cintura
Perdendo-se na púbis, pantanal escritura
No final já era só dormência
húmida volúpia labial
anal, trémula consciência
Sexo Nosso que estais na Terra,
santificado seja o vosso santo copulatório,
venha a nós clítoris o vosso êxtase,
seja feita a vossa vontade
assim no espaço como no tempo.

A penetração nossa de cada dia nos daí hoje,
perdoai-nos os órgãos retesados,
assim como nós perdoamos
a quem nos tem pisado os mamilos,
e deixai-nos cair em tentação

(no inferno na Terra)

Mas livrai-nos do mal.

Ámen.
Kublai – Tudo é inútil, se o último local de desembarque tiver de ser a cidade infernal, e é lá no fundo que, numa espiral cada vez mais apertada, nos chupar a corrente.
E Pólo: - O inferno dos vivos não é uma coisa que virá a existir, se houver um, é o que já está aqui, o inferno que habitamos todos os dias, que nós formamos aos estarmos juntos. Há dois modos para não o sofrermos. O primeiro torna-se fácil para muita gente: aceitar o inferno e fazer parte dele a ponto de já não o vermos. O segundo é arriscado e exige uma atenção e uma aprendizagem contínuas: tentar e saber reconhecer, no meio do inferno, quem e o que não é inferno, e fazê-lo viver, e dar-lhe lugar.
Calvino, in “As Cidades Invisíveis”, 5ª edição, página 166, Editorial Teorema.

o crime

Ah! Herodes choraria de pena se tivesse escrito a Bíblia e como se comoveram os negreiros que tenham tido a ventura de ler "A Cabana do Pai Tomás! ou os que modernamente virm a versão de celuloide! Sensibiliza-nos mais a ilusão do que a própria realidade! Choca-nos um filme ou um livro sobre a miséria e a fome, que passam indiferentes ao nosso lado. Que verdade há na descrição da morte de um homem soterrado numa mina se não estamos com ele e a sua dor se encontra tão distante? Começo a deitar abaixo as prateleiras cheias de livros e rasgo-os enchendo o quarto de páginas que esvoaçam...
- Mentiras! Tudo mentiras! Vendilhões! Comerciantes!
Ah! Que sei eu do que escrevo? Falhei! Sonho que agrido o editor e o vendedor de livros com uma pesada encadernação do Gil Blas Santillana que nada vale a não ser a brochura e que os meto à força no meio de uma edição folhetinesca capaz de fazer chorar as pedras. Para conhecerem bem o que editam vão ser comidos pela traça e eu divirto-me a ouvi-los prometer gordas edições ilustradas e o melhor lugar nas prateleiras das livrarias. Depois agarro numa caixa de fósforos decidido a arder em bonzo, quando me surge a ideia. Por que não? Fecho a porta do quarto, desço as escadas a correr e saio para a rua. Pego no meu manuscrito que nunca abandono pondo-o como isca na beira da calçada. Deixo-o aberto e escondo-me no vão da escada. Por Deus! Ah! Que longa espera! Até que ele chega... sim! E como me despreza! Levanta o manuscrito do chão e folheia-o indiferente, atirando-o depois de novo para o solo. Salto do vão da escada e caio-lhe raivoso em cima! Oh!, Céus! Odeio-o! Odeio-o! Sinto a ferida que o aguilhão da indiferença e do desdém me abre na carne e, não podendo mais, deito-lhe a mão ao pescoço e estrangulo-o quando só desejava que ele reparasse em mim!...
Desço lentamente até ao chão de joelhos e pego fogo à roupa. Ao arder, choro amargamente arrependido.
- Oh! Meu Deus! Que estúpido sou! Agora que matei o leitor que gesto inútil não é suicidar-me?
Miguel Barbosa, in "Esta Louca Profissão de Escritor", páginas 36 e 37, Colecção Passo a Palavra, Livraria Ler Editora

as cidades contínuas

«Todos os anos nas minhas viagens paro em Procópia e fico alojado no mesmo quarto da mesma pensão. Desde a primeira vez, detenho-me a contemplar a paisagem que se vê abrindo a cortina da janela: um fosso, uma ponte, um muro, um sorbeira, um campo de milho, uma sebe com amoras, uma capoeira, um cume de colina amarelo, uma nuvem branca, um pedaço de céu azul em forma de trapézio. Tenho a certeza de que da primeira vez não se via ninguém; foi só um ano depois que, a seguir a um movimento por entre as folhas, consegui distinguir uma cara redonda e achatada que roía uma maçaroca. Passado um ano já eram três em cima do muro, e ao meu regresso vi seis, sentados em fila, de mãos nos joelhos e umas sorbas num prato. Todos os anos, assim que entrava no quarto, levantava a cortina e contava mais algumas caras: dezasseis, incluindo os que estavam dentro do fosso; vinte e nove, dos quais oito empoleirados na sorbeira; quarenta e sete sem contar os da capoeira. São parecidos, têm um ar simpático, de borbulhas nas bochechas, sorriem, um ou outro com a boca suja de amoras. Em breve passei a ver toda a ponte cheia de tipos de cara redonda, agachados porque já não tinham sítio para se mexerem; trincavam as maçarocas, e depois roíam os talos.
Assim, anos após ano, fui vendo desaparecer o fosso, a árvore, a sebe, ocultos por barreiras de sorrisos tranquilos no meio das bochechas redondas que se movem mastigando folhas. Não se faz ideia, num espaço pequeno como aquele minúsculo milheiral, de quanta gente pode caber, especialmente se estiverem sentados de braços à volta dos joelhos e imóveis. Deve haver muitos mais do que parece: o cume da colina vi-o eu cobrir-se de uma multidão cada vez maior; mas desde que os da ponte ganharam o hábito de se porem às cavalitas uns dos outros nunca mais consegui ver mais nada para além deles.
Este ano, finalmente, ao levantar a cortina, a janela enquadra apenas uma extensão de caras: de um canto ao outro, a todos os níveis e a todas as distâncias, vêem-se estes rostos redondos, quietos, muito achatados, com um esboço de sorriso, e no meio muitas mãos, que se agarram aos ombros dos que estão à frente. Até o céu desapareceu. Mais vale afastar-me da janela...
Não por me ser fácil mexer-me. No meu quarto estamos alojados vinte e seis: para deslocar os pés tenho de incomodar os que estão acocorados no chão, abro caminho por entre os joelhos do que estão sentados no baú e os cotovelos dos que estão na vez de se encostarem à cama: tudo pessoas muito simpáticas, felizmente.»
Italo Calvino, in "As Cidades Invisíveis", 5ª edição, páginas 148 e 149, Editorial Teorema.

terça-feira, 2 de março de 2010

O homem sem nome

Hoje olha para trás e instintivamente abana a cabeça, pensando o quão ignorante foi por nunca ter pensado que a vida nasceu do ventre de uma prostituta. A ele, é escusado dar-lhe um nome. Prefiro mantê-lo no anonimato, escondido atrás de uma árvore ou preso num sótão de alguém que ainda não conheci e que talvez nunca virei a conhecer.
Mas dizia eu que para ele a vida é filha da prostituição, do saque, da amotinação. E não foi à toa que ele chegou a esta conclusão, pois ela era bela, instável e chupadora. Trazia resquícios de vinho nos lábios gretados e quando tossia, tentava inconscientemente expulsar o mal que a impedia de cortar a artéria umbilical. Nunca se soube como se conheceram, nem mesmo eu, mãe literária. Apenas que faziam amor em público, como crianças ousadas que anseiam o doce mel, o mais distante, o impossível e que gemiam e gritavam em praça pública palavras ordinárias que sem querer (e sem dever) feriam a audição beata, animal de hábitos.
Com o passar do tempo, ele transformou-se objecto de falatório público, tema rotineiro de conversa e rapidamente tomou as cores do nada, carente de pele e osso, escravo da transparência. Até ao dia em que ela fugiu, carregando consigo os seus sentidos, sonhos de infância, as virtudes e ócios de uma vida. O calor da vergonha abalou a cidade rubra. Hoje já ninguém fala dele, ficou enterrado no âmago de uma geração que preferiu esquecê-lo, passou de ninguém para ser nada.
Já eu, mãe-criadora, prefiro continuar a escrever sobre ele, mesmo não lhe dando um nome.

auto-biografia

escrevi uns versos
no outro dia
mas talvez por rebeldia
ou débil anatomia
os versos não rimaram.

estaria assim tão vazia,
sem ossos e em agonia,
que nem uma simples palavra
do ventre me saia?

então de frente para o púlpito implorei:
“devolvam-me a anestesia,
o sexo, a ousadia
pois anseio o dia em que direi:
deitei-me com a poesia
ajoelhada de costas
que nem uma vadia.
aqui tens a minha auto-biografia”

As paredes

Foi quando o vi sair da cama, envolto pelo odor do seu sexo selvagem, agora mais envergonhado, que me apercebi do quanto preciso dele para me levantar de manhã. Anulo-me à minha nulidade e enquanto o escrevo os dedos tiritam de alegria e os pulmões espreguiçam o ar que dele inspiro. Não intencionalmente (ou o que é costume pensar-se), o clímax invadiu os ouvidos vizinhos, recolhidos atrás das paredes que poderão ser consideradas tudo, menos surdas-mudas. Mas desta vez até elas preferiram cerrar os olhos e os ouvidos, respeitando o gemido, o limar de unhas, a combustão do útero. Porque desta vez o sexo era natural, era preciso, enquanto expressão crua do acto mais belo celebrado entre qualquer espécime humano.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

alçapão


Naqueles tempos o trilho era apertado até para o corpo mais ágil. Então vieram os alardos apetrechados de tratores de guerra que derrubaram os bastardos escanzelados, de boca seca. Dos areões ouviam-se os urros, os cartuchos, a paisagem fosforescente dos sargaços, tantos bagaços enfim retesados e em plena brenha especiosa o javali amanhado e a moça prenha à luz da sofreguidão. Venham noites de ócio cantar à minha beira. O canto dos mandarins já não é meu e não me ralo com isso.

meu universo Mozart

A noite abeirou e com ela uma infinidade de estrelas presas ao céu. O palco, a música e os espectadores fundiam-se numa harmonia existencial sublime, capaz de vergar o espírito mais pobre ao entendimento perfeito do ser.
Teresa, com os olhos semi-cerrados, assistiu ao concerto da varanda. Nua e com uma touca verde na cabeça. Quase a entrar num estado permanente de demência, a música do maestro absorveu-lhe as últimas gotas de lucidez e Teresa desembocou no mundo das notas que tocavam no ar. De braços estendidos, como se abraçasse o palco, alcançava a claridade do conhecimento retorcido através da melodia morosa e chorava. Cria que a vida nasce só para alguns; (os outros) ficam esquecidos. Um bando de gaivotas pretas galhofava ruidosamente, antevendo a desgraça que pode irromper a qualquer um, a qualquer momento. Mas Teresa e os espectadores mantiveram-se firmes, absorvidos pelo compasso gradual da música. O sofrimento crescia de tom, os espectadores gemiam e suavam silenciosamente. Teresa não acreditava no que sentia. Estava eufórica com a dor que a consumia por dentro e que finalmente conferia sentido à sua existência. Afinal, como todos os outros, sofria, chorava e gemia. E, pela última vez, declamou bem alto:

Meu universo Mozart[1]
I
Meu universo Mozart
De onde eu parto
Meu fundo ter de mim
Com seu invento

Meu fundo me afundar
Com seu palácio
Minha breve loucura
Com seu vento

Minha música-corpo
Meu orgasmo
Minha fuga meu mundo
Meu sustento

Meu universo Mozart
Meu retrato
Meu suicídio lento
Muito lento

[1] Cadernos de Poesia, Maria Teresa Horta, Minha Senhora de mim, Publicações Dom Quixote.

O parto

Na madrugada em que o vento brando fazia as flores do prado roçarem umas nas outras, dando a impressão de sussurrarem baixinho, Luísa sentiu a primeira contracção. Estendida na cama, chorava lágrimas secas e contorcia o corpo engelhado. Luísa abriu espontaneamente as pernas como um pássaro abre as asas. O suor calcinava-lhe a alma e as longas expirações debilitavam-lhe os sentidos. Pelos lençóis imaculados escorriam riachos de sangue e sucos lânguidos de dor. Junto ao ouvido, sentiu, novamente, o sopro do homem que se ergueu nu no topo do relógio gigante, segurando na mão uma cruz de madeira. Avistou ao fundo da cama a criatura pequena e frágil, com orelhas entrançadas e seios descaídos. Luísa juntou as mãos em sinal de oração e relembrou o caixão dourado. Depois de várias horas de trabalho de parto, Luísa cerrou os olhos e aconchegou o morto.

A música da morte (quando os que ouvem são surdos...)

Na noite que antecedeu o concerto, o maestro estava estranhamente bem disposto, apesar do receio de ser visto. Sentou-se na última mesa junto à casa de banho e pediu um whisky à empregada que calçava uns saltos altos desbocados e transparentes. Começava a questionar-se se teria tomado a decisão certa ao convidá-lo para tomar um copo. Enfim, pensou, já não há nada a fazer. Quando o viu entrar no estabelecimento, levantou o braço e acenou-lhe com a mão.

- Para mim a obra de um poeta e de um maestro encerram em si a mesma verdade suicida. Nunca o que o poeta escreve é o que é, a ideia posteriormente visível será sempre e inevitavelmente uma mancha desfocada. A verdade é só mais uma forma de camuflagem – defendeu o maestro.

- A verdade é clara e transparente como a água. Já o homem é a peça que se deixa emaranhar pela teia confusa do pensamento.

- Mas para um maestro é impossível conseguir exteriorizar as notas que tocam na sua cabeça da forma mais pura; as palavras são vagas para uma ideia que é firme no seu estado mais puro e, da mesma maneira que aquilo que um poeta escreve pode ser interpretado de infinitas maneiras, o mesmo se passa com um maestro.

- - -

Desde pequeno que o maestro sofre de insónias. Na altura, os pais consultaram todos os médicos da cidade, até os mais conceituados, mas nenhum foi capaz de lhe diagnosticar qualquer patologia. Com 41 anos, o maestro ainda se lembra com alguma regularidade dos pesadelos que o costumavam assolar em miúdo. Então o garoto enroscava-se nos lençóis de flanela borbotados e ficava horas de olhos presos no tecto, pedindo a Deus para não adormecer. Mas este nunca respondia ao seu pedido e, ao acordar, o maestro sentia-se envergonhado por ter molhado mais uma vez a cama.

Quando entrou para a escola, a expressão cabisbaixa e os gestos delicados enterneciam a professora mais rígida. Entre os colegas de turma, era conhecido como o maluquinho do fato azul, aquele que se senta no último lugar do meio e permanece calado, entretido com o vazio. Os professores raramente o confrontavam com alguma pergunta ou observação pois tinham ordens para não o incomodar. Os colegas, por outro lado, faziam questão de expressar a sua maldade, ora atirando-o para o caixote do lixo, ora escavacando-lhe os óculos côncavos, ora apontando-lhe o dedo sempre que o viam chegar à escola com aquele fato azul fora de moda. Mas, enquanto subia vagarosamente a escadaria principal do edifício escolar, o menino parecia nunca se importar.

Aos 21 anos, ainda a estudar no Conservatório de Música, o maestro actuou, pela primeira vez, num teatro municipal, a convite da Sociedade das Artes Musicais. Na altura, a pele acinzentada e a expressão cadavérica garantiam-lhe alguma notoriedade no meio. Andava sempre acompanhado por uma pasta preta, onde guardava com cuidado as partituras, e eram raras as vezes que falava sem gesticular as mãos. Quando as cortinas vermelhas desvendaram o palco, o maestro desabrochou os braços e errou a primeira nota. E a segunda e a terceira. À quarta nota, inspirou fundo e pediu ao cravista que subisse de tom. E depois ao violoncelista, ao harpista, ao barítono e ao soprano, até que todos se fundiram numa só nota levando à exaltação do público que aplaudiu de pé o maestro. No final, vergou as costas e baixou a cabeça, desolado.

O dia do Concerto da Primavera chegara finalmente. Com a vinda da Primavera, a cidade vestira-se de cor e luz. As raparigas apressaram-se a tirar os vestidinhos amarelos do armário; as serpentinas de papel e os longos tapetes de flores estendidos na calçada deliciavam os pezinhos descalços das criancinhas que brincavam à cabra-cega.
Mas no dia do concerto, o maestro levantou-se carrancudo. Fechou-se durante alguns minutos na casa de banho e masturbou-se em frente ao espelho, esbracejando convictamente a música que tocava algures na sua memória, nota a nota, ritmo a ritmo, os tempos e os silêncios.
Sempre que dava um concerto, o maestro recusava-se a usar a batuta que usara no concerto anterior. Ao terminar um espectáculo, ouvia desinteressado a ovação do público e dirigia-se o mais rapidamente possível para o camarim. Aí, apressava-se a deitar a batuta usada no lixo e a sair discretamente do edifício.
Para o músico, a ideia de um concerto perfeito passava por este ser capaz de destruir o conteúdo falso dos espectadores, deixando-os atordoados, a suar e a gemer silenciosamente por dentro. Era esta força de destruição que o maestro evocava sempre que entrava em palco: uma força capaz de aproximar o público da morte através de uma experiência tão atroz que os deixasse desarmados perante a vida.
Ainda assim, era esta busca por algo que não existia que dava sentido à existência do maestro. Conferia-lhe forças para continuar, ainda que a consciência dessa verdade fosse cada vez mais dolorosa.
Terminado o ritual em frente ao espelho, o músico vestiu agilmente umas calças de bombazina e uma t-shirt gasta na gola e saiu de casa sem tomar o pequeno-almoço.

O sol-posto anteviu o início do espectáculo que celebrava a chegada da estação mais florida do ano. Os últimos a chegar apressaram-se a sentar nos respectivos lugares e as rapariguinhas vestidas de amarelo cruzavam as suas pernas de seda chamando a atenção dos rapazolas mais atrevidos.
A iluminação do palco e a entrada dos músicos geraram o emudecimento da plateia. As notas serenas da harpa e do violino abriram o concerto durante alguns segundos. Os braços do maestro acariciavam o ar dançante e transportavam o público para um estado de leveza e nostalgia, aliciante até para os mais novos. Semelhante a uma linha que segue direcções sinuosas, para cima e para baixo num movimento quase imperceptível, a música do maestro convocava a presença de uma energia incorpórea que esmagava o coração daqueles que a ouviam. Abriu espaço a uma inebriante fraqueza que amoleceu o espírito e convocou a morte. Com o avançar da melodia, os espectadores começavam a encerrar-se em si, calcando a euforia da música que toca já longe. Com todos os olhos postos no apogeu máximo da ópera, embriagada pelo corpo ondeante do maestro que accionava ferozmente a música do seu coração, os espectadores caíram em uníssono no chão. Os corpos ainda lúcidos estavam quentes e exsudados, afogavam-se vagarosamente no seu próprio suor, como se um mar de esperma tivesse invadido o Concerto da Primavera. As árvores do jardim secaram e as flores apodreceram; já não se ouvia música, apenas o silêncio da morte. E então aí o maestro virou-se de frente para o público, esticou os braços para o céu estrelado e vergou-se, arrebatado. Finalmente conseguiu dar vida à música da morte.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

SALADA DE PEIXE

O escadote foi chamado mais uma vez, agora para montar o candeeiro octogonal renascentista que pesava nos braços esticados do Mário. Os três de olhos postos na viga do tecto da garagem, boquiabertos com as bochechas carminas do rapaz, tal não era o seu esforço. A Ana esperava impacientemente a palavra de ordem, encostada junto à caixa preta da electricidade. “Já está!”, disse ele, e ela quase que puxava o botão para cima. Quase. Não aconteceu nada, a não ser o flash da máquina do Tagas a bater nos refegos da barriga imaculada do Mário e o Gordo a dizer: “É assim que os acidentes acontecem!”.

(Vinte minutos mais tarde, nos sofás)

- Então e comeram a salada de peixe? Como é que está? Está boa? – indagou a Ana.
- É tipo, imagina... salada russa. É basicamente isso mas com peixe - esclareceu o Gordo.
- Mas tem batata?
- Tem. Tem batata, couve-flor, brócolos.
- Tem é brócolos, que é uma merda! - reclamou o Mário.
- Odeio é quando os brócolos vêm muita cozidos – opinou a Ana, de imediato.
- Pois EU ODEIO quando os brócolos vêem! – gesticulando o sinal universal para terminar uma conversa.
“Odeio quando os brócolos vêem!” – repetiu a Ana, largando uma gargalhada estridente.
- Pá, odeio brócolos, odeio BRÓCOLOS!
- Alguém tem um isqueiro? -, perguntou o Gordo sem resposta.
- Pá, não tem a ver com ser fã ou não ser fã. Eu NÃOOOOOO! – gritou o Mário.
- Pá, eu não como ervilhas. – opinou novamente a Ana.
. NÃOOOO NÃOOOO NÃOOO”! Não como brócolos!

A mulher veneziana

A ponte dos suspiros estava lá com ela, de braços cruzados, consentindo impávida o seu fingimento ao cirandar pelos canais dédalos que lhe castravam o anseio de chegar ao mundo. Mas que amaldiçoado âmago poento da mulher veneziana, fantasma de ouro, carnaval de persiana. Era meretriz de ideias inconstantes, ora convulsas ora vagantes, levada pela força da invisibilidade, tinta de escrutínio, saudação muda. O vazio tornara-se um fardo demasiado pesado para carregar às costas em dias de chuva: caiu aos pés do mar e enxugou nele as suas lágrimas, pois era a ele que pertenciam.
Todos os finais de tarde junto à ponte, manchava as calças de fina seda italiana com o suco fresco que escorria das grossas talhadas de melancia que roubava no mercado. E quando se punha noite, a longa cabeleira rubro acre aconchegava-lhe as clavículas ossudas e louvava as ondas do mar que se esquivam umas das outras eternamente. E era com a força da espuma cor de salmão que a veneziana experimentava lançar redes de pesca ao mar, exaltar a pujança dos operários das fábricas em poesia, igualar a precisão dos calceteiros da cidade. Mas infelizmente as redes não apanhavam senão grãos de areia, conchas e beatas, a folha branca permanecia vazia de exaltação e a calçada desalinhada servia de almofada a joelhos em chama.
Os seus longos suspiros apiedavam os habitantes da cidade dos mil canais: o peixeiro, o ourives, o mercenário e/ou sapateiro. Desde sempre que a ideia de uma mulher em apuros é bem mais estimulante que a ideia de uma mulher em liberdade. Porra.
E foi assim que, deslumbrada pelo brilho intenso da manhã, a mulher veneziana, como o elefante que se afasta do grupo para morrer em solidão, ordenou à gôndola que cirandasse para sempre pelos canais dédalos e fugidios de Veneza.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010


http://www.joelcooner.com/.../wrestle-closer-d_7416.jpg

o chá da vulva

Que linguagem sôfrega da mão
nos mamilos brancos
em corpo de leite derramados
e que deleite,
e que convulsão,
ouvir o gemido sagaz
ao ouvido da vulva cálida,
tão voraz
que anseia pálida
mel ejaculado no regaço
e que opulentas cuecas
junto à perna da cama
em sono profundo
cansadas

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Lassa

Outrora ínsua de braços em pólvora e chapéus em espiral, à mercê dos desígnios do pranto salgado e das mulheres de buços brutos serenados pelos raios de sol de Maio, Lassa parece ter sido exilada da Terra. Não mais se ouviu o seu espreguiçar. Atroz languidez que se despenhou aos ziguezagues por quelhos esconsos que um dia viram passar um homem de capachinho na mão, intrigado com o aparato fogueteiro que queimava o céu constelado. Cecília ainda se recorda da Lassa antiga, aquela das cervejas condimentadas com pimenta das Arábias, dos toques das campainhas que se desfaziam em pó nas mãos das criancinhas, das correrias, do pão, da lezíria e dos juncus marginatos. Não mais pensou em entregar-se de novo àquela cidade estonteante que a viu tornar-se mulher. Quando ela passava pela pracinha do centro não havia olhar masculino que não se revirasse de tesão, muito menos mulher que não comentasse o seu decote cuidadosamente bordado à mão. E numa madrugada em que o vento fazia as flores do prado roçarem umas nas outras, dando a impressão de sussurrarem baixinho, Cecília fez as malas e deixou Lassa. Talvez tenha sido por isso que Lassa deixou de ser a mesma. Talvez a imagem de Cecília, de costas voltadas para a ínsua, num barco de pescadores a trabalhar vagarosamente tenha despertado tamanha tristeza. Lassa é agora a ínsua dos desgostosos, dos que caíram no vazio da alma, dos expatriados, dos marinheiros enxovalhados.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

circo de zebus

Da mesma maneira que o sangue da noite estancou, a alma em flecha e o circo chegou à cidade. A tenda amarelo amendoim desmaiada pelo sol, qual testa que esbarra contra o chapéu do ilusionista e uns quantos lémures no apêndice vermelho-coral. A arena vestida de camelo e descuidadamente suspensa no ar atiça os dentes do zebu que por terem sido serrados à pressa pelo veio da navalha reproduzem em câmara lenta as mãos da criança cravadas nas pregas vincadas do vestido em forma de leque. Xeque-mate! Os malabaristas estátuas, em pose vigilante, de cócoras vergados, como se esperassem as planícies fátuas aguadas de tesão. É a vez do ruído das rodas da jaula octogonal rutilante, do vapor menta-hortelã, das narinas rectas e peganhentas. Plateia muda, apenas o rumorejo dos zebus que só pensam em andar ao verde. E nisto, tromba erecta derruba bancadas e expressões esfrangalhadas. Chamam por Vénus vezes sem vez e o que vêem são esquinas de boca esbranquiçadas. (o elefante entra em cena); o circo não mais tornou a ser o mesmo, tomou posse da carne da viúva, do aleijado, do cabrito desdentado, encabritando-se em confrontos de braço de ferro, cuja violência se assemelha à natureza do homem. Poder-se-ia perguntar: e o servo inútil?, e aí sim, ouvir-se-ia, com uma voz rouca e encrespada: Quanto ao servo inútil, lançai-o às trevas exteriores. Aí haverá choro e ranger de dentes. Palavra da salvação. Ámen.


quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

kubaza

planície casca de laranja (Octávia) cidade teia de aranha

Faltou-lhes bengala entre as... Barrete! Fugiram com a massambala e a bunda entre as pernas, andar trôpego entupido, marufo que escorrega, desinibido, ponto de fuga, sugado, sanguessuga arame farpado choramingou um tipo fajuto derrotado.
Voltaram quando deixaram de acreditar em alunagens. Em paisagens púrpuras, moinhos de vento tricotados em lã, esculturas esculpidas, rebuçados de cobre e arre! sou filho da puta e se me sento jamais me levanto e se me deito jamais adormeço na minha despensa conservada trancada à chave ao lado de atuns e desnatados.