terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

A mulher veneziana

A ponte dos suspiros estava lá com ela, de braços cruzados, consentindo impávida o seu fingimento ao cirandar pelos canais dédalos que lhe castravam o anseio de chegar ao mundo. Mas que amaldiçoado âmago poento da mulher veneziana, fantasma de ouro, carnaval de persiana. Era meretriz de ideias inconstantes, ora convulsas ora vagantes, levada pela força da invisibilidade, tinta de escrutínio, saudação muda. O vazio tornara-se um fardo demasiado pesado para carregar às costas em dias de chuva: caiu aos pés do mar e enxugou nele as suas lágrimas, pois era a ele que pertenciam.
Todos os finais de tarde junto à ponte, manchava as calças de fina seda italiana com o suco fresco que escorria das grossas talhadas de melancia que roubava no mercado. E quando se punha noite, a longa cabeleira rubro acre aconchegava-lhe as clavículas ossudas e louvava as ondas do mar que se esquivam umas das outras eternamente. E era com a força da espuma cor de salmão que a veneziana experimentava lançar redes de pesca ao mar, exaltar a pujança dos operários das fábricas em poesia, igualar a precisão dos calceteiros da cidade. Mas infelizmente as redes não apanhavam senão grãos de areia, conchas e beatas, a folha branca permanecia vazia de exaltação e a calçada desalinhada servia de almofada a joelhos em chama.
Os seus longos suspiros apiedavam os habitantes da cidade dos mil canais: o peixeiro, o ourives, o mercenário e/ou sapateiro. Desde sempre que a ideia de uma mulher em apuros é bem mais estimulante que a ideia de uma mulher em liberdade. Porra.
E foi assim que, deslumbrada pelo brilho intenso da manhã, a mulher veneziana, como o elefante que se afasta do grupo para morrer em solidão, ordenou à gôndola que cirandasse para sempre pelos canais dédalos e fugidios de Veneza.

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