sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

meu universo Mozart

A noite abeirou e com ela uma infinidade de estrelas presas ao céu. O palco, a música e os espectadores fundiam-se numa harmonia existencial sublime, capaz de vergar o espírito mais pobre ao entendimento perfeito do ser.
Teresa, com os olhos semi-cerrados, assistiu ao concerto da varanda. Nua e com uma touca verde na cabeça. Quase a entrar num estado permanente de demência, a música do maestro absorveu-lhe as últimas gotas de lucidez e Teresa desembocou no mundo das notas que tocavam no ar. De braços estendidos, como se abraçasse o palco, alcançava a claridade do conhecimento retorcido através da melodia morosa e chorava. Cria que a vida nasce só para alguns; (os outros) ficam esquecidos. Um bando de gaivotas pretas galhofava ruidosamente, antevendo a desgraça que pode irromper a qualquer um, a qualquer momento. Mas Teresa e os espectadores mantiveram-se firmes, absorvidos pelo compasso gradual da música. O sofrimento crescia de tom, os espectadores gemiam e suavam silenciosamente. Teresa não acreditava no que sentia. Estava eufórica com a dor que a consumia por dentro e que finalmente conferia sentido à sua existência. Afinal, como todos os outros, sofria, chorava e gemia. E, pela última vez, declamou bem alto:

Meu universo Mozart[1]
I
Meu universo Mozart
De onde eu parto
Meu fundo ter de mim
Com seu invento

Meu fundo me afundar
Com seu palácio
Minha breve loucura
Com seu vento

Minha música-corpo
Meu orgasmo
Minha fuga meu mundo
Meu sustento

Meu universo Mozart
Meu retrato
Meu suicídio lento
Muito lento

[1] Cadernos de Poesia, Maria Teresa Horta, Minha Senhora de mim, Publicações Dom Quixote.

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