sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

A música da morte (quando os que ouvem são surdos...)

Na noite que antecedeu o concerto, o maestro estava estranhamente bem disposto, apesar do receio de ser visto. Sentou-se na última mesa junto à casa de banho e pediu um whisky à empregada que calçava uns saltos altos desbocados e transparentes. Começava a questionar-se se teria tomado a decisão certa ao convidá-lo para tomar um copo. Enfim, pensou, já não há nada a fazer. Quando o viu entrar no estabelecimento, levantou o braço e acenou-lhe com a mão.

- Para mim a obra de um poeta e de um maestro encerram em si a mesma verdade suicida. Nunca o que o poeta escreve é o que é, a ideia posteriormente visível será sempre e inevitavelmente uma mancha desfocada. A verdade é só mais uma forma de camuflagem – defendeu o maestro.

- A verdade é clara e transparente como a água. Já o homem é a peça que se deixa emaranhar pela teia confusa do pensamento.

- Mas para um maestro é impossível conseguir exteriorizar as notas que tocam na sua cabeça da forma mais pura; as palavras são vagas para uma ideia que é firme no seu estado mais puro e, da mesma maneira que aquilo que um poeta escreve pode ser interpretado de infinitas maneiras, o mesmo se passa com um maestro.

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Desde pequeno que o maestro sofre de insónias. Na altura, os pais consultaram todos os médicos da cidade, até os mais conceituados, mas nenhum foi capaz de lhe diagnosticar qualquer patologia. Com 41 anos, o maestro ainda se lembra com alguma regularidade dos pesadelos que o costumavam assolar em miúdo. Então o garoto enroscava-se nos lençóis de flanela borbotados e ficava horas de olhos presos no tecto, pedindo a Deus para não adormecer. Mas este nunca respondia ao seu pedido e, ao acordar, o maestro sentia-se envergonhado por ter molhado mais uma vez a cama.

Quando entrou para a escola, a expressão cabisbaixa e os gestos delicados enterneciam a professora mais rígida. Entre os colegas de turma, era conhecido como o maluquinho do fato azul, aquele que se senta no último lugar do meio e permanece calado, entretido com o vazio. Os professores raramente o confrontavam com alguma pergunta ou observação pois tinham ordens para não o incomodar. Os colegas, por outro lado, faziam questão de expressar a sua maldade, ora atirando-o para o caixote do lixo, ora escavacando-lhe os óculos côncavos, ora apontando-lhe o dedo sempre que o viam chegar à escola com aquele fato azul fora de moda. Mas, enquanto subia vagarosamente a escadaria principal do edifício escolar, o menino parecia nunca se importar.

Aos 21 anos, ainda a estudar no Conservatório de Música, o maestro actuou, pela primeira vez, num teatro municipal, a convite da Sociedade das Artes Musicais. Na altura, a pele acinzentada e a expressão cadavérica garantiam-lhe alguma notoriedade no meio. Andava sempre acompanhado por uma pasta preta, onde guardava com cuidado as partituras, e eram raras as vezes que falava sem gesticular as mãos. Quando as cortinas vermelhas desvendaram o palco, o maestro desabrochou os braços e errou a primeira nota. E a segunda e a terceira. À quarta nota, inspirou fundo e pediu ao cravista que subisse de tom. E depois ao violoncelista, ao harpista, ao barítono e ao soprano, até que todos se fundiram numa só nota levando à exaltação do público que aplaudiu de pé o maestro. No final, vergou as costas e baixou a cabeça, desolado.

O dia do Concerto da Primavera chegara finalmente. Com a vinda da Primavera, a cidade vestira-se de cor e luz. As raparigas apressaram-se a tirar os vestidinhos amarelos do armário; as serpentinas de papel e os longos tapetes de flores estendidos na calçada deliciavam os pezinhos descalços das criancinhas que brincavam à cabra-cega.
Mas no dia do concerto, o maestro levantou-se carrancudo. Fechou-se durante alguns minutos na casa de banho e masturbou-se em frente ao espelho, esbracejando convictamente a música que tocava algures na sua memória, nota a nota, ritmo a ritmo, os tempos e os silêncios.
Sempre que dava um concerto, o maestro recusava-se a usar a batuta que usara no concerto anterior. Ao terminar um espectáculo, ouvia desinteressado a ovação do público e dirigia-se o mais rapidamente possível para o camarim. Aí, apressava-se a deitar a batuta usada no lixo e a sair discretamente do edifício.
Para o músico, a ideia de um concerto perfeito passava por este ser capaz de destruir o conteúdo falso dos espectadores, deixando-os atordoados, a suar e a gemer silenciosamente por dentro. Era esta força de destruição que o maestro evocava sempre que entrava em palco: uma força capaz de aproximar o público da morte através de uma experiência tão atroz que os deixasse desarmados perante a vida.
Ainda assim, era esta busca por algo que não existia que dava sentido à existência do maestro. Conferia-lhe forças para continuar, ainda que a consciência dessa verdade fosse cada vez mais dolorosa.
Terminado o ritual em frente ao espelho, o músico vestiu agilmente umas calças de bombazina e uma t-shirt gasta na gola e saiu de casa sem tomar o pequeno-almoço.

O sol-posto anteviu o início do espectáculo que celebrava a chegada da estação mais florida do ano. Os últimos a chegar apressaram-se a sentar nos respectivos lugares e as rapariguinhas vestidas de amarelo cruzavam as suas pernas de seda chamando a atenção dos rapazolas mais atrevidos.
A iluminação do palco e a entrada dos músicos geraram o emudecimento da plateia. As notas serenas da harpa e do violino abriram o concerto durante alguns segundos. Os braços do maestro acariciavam o ar dançante e transportavam o público para um estado de leveza e nostalgia, aliciante até para os mais novos. Semelhante a uma linha que segue direcções sinuosas, para cima e para baixo num movimento quase imperceptível, a música do maestro convocava a presença de uma energia incorpórea que esmagava o coração daqueles que a ouviam. Abriu espaço a uma inebriante fraqueza que amoleceu o espírito e convocou a morte. Com o avançar da melodia, os espectadores começavam a encerrar-se em si, calcando a euforia da música que toca já longe. Com todos os olhos postos no apogeu máximo da ópera, embriagada pelo corpo ondeante do maestro que accionava ferozmente a música do seu coração, os espectadores caíram em uníssono no chão. Os corpos ainda lúcidos estavam quentes e exsudados, afogavam-se vagarosamente no seu próprio suor, como se um mar de esperma tivesse invadido o Concerto da Primavera. As árvores do jardim secaram e as flores apodreceram; já não se ouvia música, apenas o silêncio da morte. E então aí o maestro virou-se de frente para o público, esticou os braços para o céu estrelado e vergou-se, arrebatado. Finalmente conseguiu dar vida à música da morte.

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