sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

O parto

Na madrugada em que o vento brando fazia as flores do prado roçarem umas nas outras, dando a impressão de sussurrarem baixinho, Luísa sentiu a primeira contracção. Estendida na cama, chorava lágrimas secas e contorcia o corpo engelhado. Luísa abriu espontaneamente as pernas como um pássaro abre as asas. O suor calcinava-lhe a alma e as longas expirações debilitavam-lhe os sentidos. Pelos lençóis imaculados escorriam riachos de sangue e sucos lânguidos de dor. Junto ao ouvido, sentiu, novamente, o sopro do homem que se ergueu nu no topo do relógio gigante, segurando na mão uma cruz de madeira. Avistou ao fundo da cama a criatura pequena e frágil, com orelhas entrançadas e seios descaídos. Luísa juntou as mãos em sinal de oração e relembrou o caixão dourado. Depois de várias horas de trabalho de parto, Luísa cerrou os olhos e aconchegou o morto.

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