terça-feira, 9 de março de 2010

as cidades contínuas

«Todos os anos nas minhas viagens paro em Procópia e fico alojado no mesmo quarto da mesma pensão. Desde a primeira vez, detenho-me a contemplar a paisagem que se vê abrindo a cortina da janela: um fosso, uma ponte, um muro, um sorbeira, um campo de milho, uma sebe com amoras, uma capoeira, um cume de colina amarelo, uma nuvem branca, um pedaço de céu azul em forma de trapézio. Tenho a certeza de que da primeira vez não se via ninguém; foi só um ano depois que, a seguir a um movimento por entre as folhas, consegui distinguir uma cara redonda e achatada que roía uma maçaroca. Passado um ano já eram três em cima do muro, e ao meu regresso vi seis, sentados em fila, de mãos nos joelhos e umas sorbas num prato. Todos os anos, assim que entrava no quarto, levantava a cortina e contava mais algumas caras: dezasseis, incluindo os que estavam dentro do fosso; vinte e nove, dos quais oito empoleirados na sorbeira; quarenta e sete sem contar os da capoeira. São parecidos, têm um ar simpático, de borbulhas nas bochechas, sorriem, um ou outro com a boca suja de amoras. Em breve passei a ver toda a ponte cheia de tipos de cara redonda, agachados porque já não tinham sítio para se mexerem; trincavam as maçarocas, e depois roíam os talos.
Assim, anos após ano, fui vendo desaparecer o fosso, a árvore, a sebe, ocultos por barreiras de sorrisos tranquilos no meio das bochechas redondas que se movem mastigando folhas. Não se faz ideia, num espaço pequeno como aquele minúsculo milheiral, de quanta gente pode caber, especialmente se estiverem sentados de braços à volta dos joelhos e imóveis. Deve haver muitos mais do que parece: o cume da colina vi-o eu cobrir-se de uma multidão cada vez maior; mas desde que os da ponte ganharam o hábito de se porem às cavalitas uns dos outros nunca mais consegui ver mais nada para além deles.
Este ano, finalmente, ao levantar a cortina, a janela enquadra apenas uma extensão de caras: de um canto ao outro, a todos os níveis e a todas as distâncias, vêem-se estes rostos redondos, quietos, muito achatados, com um esboço de sorriso, e no meio muitas mãos, que se agarram aos ombros dos que estão à frente. Até o céu desapareceu. Mais vale afastar-me da janela...
Não por me ser fácil mexer-me. No meu quarto estamos alojados vinte e seis: para deslocar os pés tenho de incomodar os que estão acocorados no chão, abro caminho por entre os joelhos do que estão sentados no baú e os cotovelos dos que estão na vez de se encostarem à cama: tudo pessoas muito simpáticas, felizmente.»
Italo Calvino, in "As Cidades Invisíveis", 5ª edição, páginas 148 e 149, Editorial Teorema.

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