terça-feira, 9 de março de 2010

o crime

Ah! Herodes choraria de pena se tivesse escrito a Bíblia e como se comoveram os negreiros que tenham tido a ventura de ler "A Cabana do Pai Tomás! ou os que modernamente virm a versão de celuloide! Sensibiliza-nos mais a ilusão do que a própria realidade! Choca-nos um filme ou um livro sobre a miséria e a fome, que passam indiferentes ao nosso lado. Que verdade há na descrição da morte de um homem soterrado numa mina se não estamos com ele e a sua dor se encontra tão distante? Começo a deitar abaixo as prateleiras cheias de livros e rasgo-os enchendo o quarto de páginas que esvoaçam...
- Mentiras! Tudo mentiras! Vendilhões! Comerciantes!
Ah! Que sei eu do que escrevo? Falhei! Sonho que agrido o editor e o vendedor de livros com uma pesada encadernação do Gil Blas Santillana que nada vale a não ser a brochura e que os meto à força no meio de uma edição folhetinesca capaz de fazer chorar as pedras. Para conhecerem bem o que editam vão ser comidos pela traça e eu divirto-me a ouvi-los prometer gordas edições ilustradas e o melhor lugar nas prateleiras das livrarias. Depois agarro numa caixa de fósforos decidido a arder em bonzo, quando me surge a ideia. Por que não? Fecho a porta do quarto, desço as escadas a correr e saio para a rua. Pego no meu manuscrito que nunca abandono pondo-o como isca na beira da calçada. Deixo-o aberto e escondo-me no vão da escada. Por Deus! Ah! Que longa espera! Até que ele chega... sim! E como me despreza! Levanta o manuscrito do chão e folheia-o indiferente, atirando-o depois de novo para o solo. Salto do vão da escada e caio-lhe raivoso em cima! Oh!, Céus! Odeio-o! Odeio-o! Sinto a ferida que o aguilhão da indiferença e do desdém me abre na carne e, não podendo mais, deito-lhe a mão ao pescoço e estrangulo-o quando só desejava que ele reparasse em mim!...
Desço lentamente até ao chão de joelhos e pego fogo à roupa. Ao arder, choro amargamente arrependido.
- Oh! Meu Deus! Que estúpido sou! Agora que matei o leitor que gesto inútil não é suicidar-me?
Miguel Barbosa, in "Esta Louca Profissão de Escritor", páginas 36 e 37, Colecção Passo a Palavra, Livraria Ler Editora

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