quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Duas camas em pólvora

Era uma vez duas camas que segredavam silêncios resguardados nas paredes do quarto maior da casa. Quase em sussurro, abriam os trâmites da memória desnudada e descobriam-se sozinhas, perpetuando-se.
O mundo das camas-amantes era aquele quarto, antigamente ocupado por um casal de meia-idade, ele plácido e impávido ela altiva e distante. Ambos se recusavam a afugentar as rugas dos velhos lençóis, a trocar as fronhas amareladas das almofadas ou a fazer uma amável dobra no lençol. Eram inquilinos frios, amantes desinteressados, seres que fraquejavam ao mínimo impulso de violência.
Começaram por discutir sobre insignificâncias mundanas – os dois amantes distantes. Depois resolveram, por mútuo acordo, afastar as camas (que eram duas para fazer uma). Depois separaram-se e puseram a casa, toda mobilada, à venda. Sem escrúpulos pelas camas que se amavam, odiaram-se até que a morte veio e lhes sugou o suco da vida.
As duas camas-amantes sentiram-se usadas e descartáveis, até mesmo corrompidas. Já nada havia a fazer senão devorarem-se ainda mais, com maior intensidade, com força maior, com vigor acrescido, com pleno sentido de consciência do que significa o amor entre duas camas em pólvora.
O sol começa a derreter-se. Digestão lenta e atordoante. O vento desconcertante toca piano do lado de lá da janela e o ranger das vidraças faz os pés das camas gemer; trocam carícias e enroscam-se na colcha rendilhada, pirosa, muito floreada. Entregam-se ao prazer ordinário e sucumbido que mora para além do assédio binário, uma vez cedido.

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