quarta-feira, 13 de maio de 2009

Metamorfose (exercício)

Ofélia chegou a casa cansada. Os músculos entorpecidos mendigavam descanso; deitou-se bruscamente no sofá grande da sala e fechou os olhos por instantes. A princípio, ainda ouvia os berros da vizinha do andar de baixo, uma senhora atarracada e antipática. Mas pouco a pouco estes sons foram-se dissipando no ar.
Adormeceu e só acordou na madrugada seguinte, ainda de noite. Ao bocejar, sentiu um gosto ácido e corrosivo na boca que a fez recordar o sonho que tivera. Estava no deserto onde, à sombra de um camelo, passara horas a devorar um pássaro vivo.Esfregou a vista que, presa ao sono, hospedava umas estranhas borras castanhas. Esfregou uma e outra vez mas nada. Continuava a ver mal.
Apesar de não ver desfocado - aliás o que via era bastante nítido -, tinha umas quantas manchas opacas que lhe sujavam o ângulo. Olhou em redor e perdeu a sala de vista. Era agora uma enorme sala de estar com abruptas peças de mobiliário envernizadas.
O acto de esticar os braços para se espreguiçar resultou num enorme susto. Viu-se assombrada por quatro patas pontiagudas, duas de cada lado. Deixa-se cair mais uma vez. "Mas que raio vem a ser isto. Ainda devo estar a sonhar", pensou.
Começava a sentir que alguma coisa estava errada. O corpo permanentemente dormente apresentava uma coloração esbranquiçada, tinha uma leve penugem debaixo das patas e
um orifício quadrangular na cara através do qual espelia um líquido azul que corroía a capa de plástico do sofá.Em esforço, apoiou a parte lateral do corpo nauseabundo nos membros direitos e em desiquílibrio tombou novamente. "Isto não pode estar-me a acontecer. Tenho de conseguir levantar-me", repetia para si mesma.
Mas por mais que tentasse, essa tarefa tornava cada vez mais difícil. Decidiu parar para aclarar as ideias e ouviu o estômago roncar. Parecia estar com fome e só lhe vinham à cabeça escorpiões crocantes e osgas sumarentas. O sol começava a entrar pelos vidros da sala. A sensação de calor no corpo fê-la perder forças e instintivamente levantou-se num ápice e refugiou-se agilmente debaixo do sofá. Deu por si a esfregar a barriga do corpo nos azulejos frescos para voltar
a si. Pela primeira vez, os novelos de cotão não a incomodoram. Pareciam mesmo desviá-la daquela realidade absurda.
Enquanto se roçava sensualmente nas bolas de pó, ouviu a porta a abrir-se. "A esta hora da manhã, só pode ser a dona Rosa", pensou.
Aproximou-se com receio da luz. Viu os sapatos ortopédicos da empregada passarem à frente do sofá e deu um pulo para trás. Só agora lhe ocorrera que era dia de limpezas. Tinha que fugir dali o mais depressa possível se não queria ser sugada pelo tubo do aspirador. Ao sair do seu esconderijo, começa a correr desenfreadamente por cima do tapete de arroiolos em direcção à mesa de jantar.
A ânsia de chegar à varanda dispara quando se vê numa encruzilhada de pernas de cadeira. Sabia que a dona Rosa não perdoaria a sua presença. Se a avistasse iria provalmente bater-lhe com a vassoura quantas vezes fossem necessárias até que estivesse esborrachada aos seus pés. E só essa imagem provocava-lhe vómitos.
Ultrapassado o desafio das cadeiras, chega finalmente à porta da varanda e avança para a rua. Entretanto, o sol que se pusera alto, tinha aquecido os azulejos laranjas do chão. Sufocada, Ofélia viu as suas patas começarem a derreter. Começava a perder os sentidos, suava abundantemente e os vapores do líquido azul queimavam-lhe os intestinos. Tinha de voltar para dentro.
Desanimada, Ofélia puxou o corpo pesado no caminho inverso até se abrigar à sombra da porta. Permaneceu imóvel durante alguns segundos mas logo reparou na presença de Rosa.
De início, o rosto da senhora já com alguma idade empalideceu ao ver aquela criatura nojenta. Revirou os olhos, ergueu a vassoura no ar e tentou matar Ofélia. Em vão. O estado de nervos em que se encontrava não lhe permitia dar firmeza aos movimentos da mão e falhava constantemente o alvo.
Esta atitude de desprezo irritou Ofélia. Imprevisivelmente introduziu as suas mandíbulas no tornozelo da velha e sugou-lhe uma quantidade desmedida de sangue. Ofélia começava a acreditar que aquele acto não premeditado permitiria ganhar-lhe algum
tempo para encontrar um bom esconderijo. A senhora afastar-se-ia dela depois de ser mordida e enquanto iria buscar ajuda ela abrigar-se-ia num bom local. Mas não foi isso que aconteceu.
Mal largou o tornozelo, a Dona Rosa estatelou-se no chão. Só agora lhe ocorrera que aquele
líquido azul que espelia constantemente podia ser venenoso. Nunca lhe passara pela cabeça que pudesse matar alguém e agora tem à sua frente aquele peso morto com o qual não sabia o que fazer.
Decidiu esconder-se novamente debaixo do sofá e aí ficou durante vários dias, sem beber nem comer. Estava fraca e perturbada. Sabia que a morte se aproximava mas optou por
antecipá-la. Esperou que o sol se pusesse alto, mais uma vez, e dirigiu-se até à porta da varanda. Inspirou fundo e avançou.

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