terça-feira, 12 de maio de 2009

Prazer feminino

"Rir? Pensamos alguma vez em rir? Quero dizer rir verdadeiramente, além da brincadeira, da troça, do ridículo. Rir, gozo imenso e delicioso, gozo completo...
Dizia à minha irmã, ou dizia-me ela a mim, anda, vamos brincar a rir? Deitávamo-nos lado a lado sobre uma cama e começávamos. A fingir, claro. Risos forçados. Risos ridículos. Risos tão ridículos que nos faziam rir. Então chegava o verdadeiro riso, o riso inteiro, que nos transportava no seu imenso rebentar. Risos sem gargalhadas, redobrados, desordenados, desenfreados, risos magníficos, sumptuosos e loucos... E ríamos até ao infinito do riso dos nossos risos... Oh rir! rir de prazer, o prazer de rir, é tão profundamente viver.

O texto que acabo de citar é extraído de um livro intitulado Parole de femme. Foi escrito em 1974, por uma das feministas apaixonadas que marcaram, com um traço distintivo, o clima do nosso tempo. É um manifesto místico de alegria. Ao desejo sexual masculino, votado aos instantes fugazes da erecção, portanto fatalmente ligado à violência, à aniquilição, ao desaparecimento, a autoraopõe, exaltando-o como seu contrário, o prazer feminino, doce, omnipresente e contínuo. Para a mulher, desde que não esteja alienada à sua própria essência, comer, beber, urinar, defecar, tocar, ouvir ou até estar ali, tudo é gozo. Esta enumeração de volúpias estende-se ao longo do livro como se fosse uma bela litania. Viver é uma felicidade: ver, ouvir, beber, comer, urinar, defecar, mergulhar na água e olhar o céu, rir e chorar. E se o coito é belo, é porque é a totalidade do prazeres possíveis da vida: o tocar, o ver, o ouvir, o falar, o cheirar, mas também o beber, o comer, o defecar, o conhecer, o dançar. O aleitamento também é uma alegria, até o parto é prazer, a menstruação é uma delícia, essa saliva morna, este leite obscuro, esse corrimento morno e quase açucarado do sangue, essa dor que tem o sabor ardente da felicidade.
Só um imbecil sorriria deste manifesto da alegria. Toda a mística é exagero."

Milan Kundera, in "O livro do riso e do esquecimento"

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