quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Relógios Falantes

Nos relógios falantes encontram-se dialogando o relógio das Chagas e o de Belas, ambos a consertar no serralheiro. As suas considerações constituem também uma censura aos costumes do tempo, dos validos, da moda, etc. Por fim, o tom é mais grave, e fala-se na velhice e na morte.
Relógio da Aldeia. Senhor Relógio da Cidade, badalemos limpo, que as paredes ouvem, e as de campanários nunca foram de segredo.
Relógio da Cidade. Olhai ora cá: se o estar sempre à dependura me não me há-de valer para tirar o medo de não morrer enforcado, melhor é acabar logo por ua vez!
R.A. Cal-te, que te fundirão!
R.C. Pois que importa? Farão de mim campainhas, e então lhes direi por cem bocas o que não querem ouvir de ua. Par Deus! mas que me fundam, mas que me confundam, eu hei-de tanger sempre a verdade!
R.A. Por isso tu cá vens por mentiroso. Diz que a verdade, na língua dos que a não falam, e como a água do Chafariz de El-Rei, que, por correr por canos de enxôfar, sempre faz mal ao fígado.
R.C. Fígados há aí tão danados, que da água pura e clara fazem peçonha.
R.A. E tu, amigo, que ganhas em desenganar o mundo, que se não quer desenganar? O sumo grau da sandice é perder-se um pelo ganho do outro.
R.C. É nobreza de coração, e ainda proximidade, não deixar perseverar a ninguém no seu engano.
In Relógios Falantes, de D. Francisco Manuel de Melo, escritos de 1654 a 1657.

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