terça-feira, 7 de julho de 2009

O melro que abandonou as florestas para se transformar num pássaro citadino

No que diz respeito ao planeta, esta invasão do mundo do homem pelo melro é incontestavelmente mais importante do que a invasão da América do Sul pelos Espanhóis ou do que o regresso dos Judeus à Palestina. A modificação das relações entre as diversas espécies da criação (peixes, pássaros, homens, vegetais) é uma modificação de ordem mais elevada do que as mudanças nas relações entre os diferentes grupos de uma espécie. Que a Boémia seja habitada pelos celtas ou pelos Eslavos, a Bessarábia conquistada pelos Romenos ou pelos Russos, à Terra tanto lhe faz. Mas que o melro tenha traído a sua natureza original para seguir o homem no seu universo artificial e contranatura é um facto que já altera alguma coisa quanto à organização do planeta.
No entanto, ninguém ousa interpretar os dois últimos séculos como a história da invasão das cidades do homem pelo melro. Somos todos prisioneiros de uma concepção pré-estabelecida do que é importante e do que não o é, fixamos sobre o que é importante olhares ansiosos, enquanto, furtivamente, nas nossas costas, o insignificante conduz a sua guerrilha, que acabará por alterar subrepticiamente o mundo e atacar-nos de surpresa.

In O Livro do Riso e do Esquecimento, Milan Kundera

Sem comentários: